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A figura do diabo no imaginário medieval


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“A ideia da influência e intervenção diabólica no mundo era bastante corrente, e a partir de meados do século XVI observa-se o surgimento de uma espécie de “surto demoníaco” na mentalidade eclesiástica, ou seja, um medo intenso do Diabo e seus agentes. Assim sendo, diversos tipos sociais passaram a ser amplamente atacados por serem supostos mandatários do inferno. Como exemplo podemos citar idólatras, judeus, muçulmanos, mulheres, feiticeiros, enfim, toda uma gama de pessoas consideradas, de alguma forma e por alguma razão, expressões do mal.

A questão do pacto demoníaco é essencial, tendo ele sido representado inclusive na famosa história de Fausto que, ao desejar conhecimento e saber, travou um contrato com Mefistófeles. Segundo a crença, diversas pessoas recorriam ao auxílio do Diabo para atingir seus objetivos e ter seus pedidos atendidos. Aos olhos eclesiásticos, esta ação era absurda pelos mais diversos motivos, incluindo o fato de que aquele que a cometia estaria contrariando os desígnios divinos em relação a si, além de não estar voltando suas súplicas para a corte celeste, que com seus eternos poderes e benevolência poderiam conceder pedidos em troca de rezas e privações. Nesse sentido, recorrer ao Demônio parecia ser mais fácil, ou pelo menos, havia uma garantia de imediatismo no atendimento dos pedidos:

...o Diabo parece estar, de certa forma, intimamente ligado a desejos materiais, intelectuais, e também a ambições carnais. Fazendo uso de seu poderio de conquista, eloqüência, e a já outrora mencionada “facilidade” com que pode-se conseguir favores – em troca, ele pede “apenas” sua alma – seres mortais submetem-se a esse ritual em troca de uma vida, em certo sentido, desenfreada. Contudo, de uma maneira ou outra, certas ambições daqueles que usufruíram daquilo que o Diabo lhes concedeu – seja qual fossem seus anseios – procuravam, a priori, satisfazer suas mais profundas aspirações; e uma vez que, se é verídico o fato de Deus tê-lo expulsado do Paraíso por causa de sua soberba, desobediência e também por sua arrogância (pelo fato de ter reivindicado sua condição de anjo) e o rebaixou à condição de Senhor dos pecados terrestres, nada mais “sensato” que pedir-lhe ajuda para tais cobiças.

Na tentativa de reconhecer a presença do mal ou do Diabo, a Inquisição passou a traçar parâmetros e classificações que auxiliassem tal identificação. Havia uma tendência no discurso cristão e clerical em ver o Diabo em diversas manifestações oriundas da cultura popular. A ingerência diabólica aparecia frequentemente nas leituras que os inquisidores e, de modo geral, as elites eclesiásticas faziam das práticas mágicas. Havia então uma nova categoria de acusação, diferente daquela popular, segundo Delumeau: “as que vêm da população local mencionam apenas malefícios; ao contrário, as formuladas pelos juízes giraram cada vez mais em torno do pacto e da marca diabólica, do sabá e das liturgias demoníacas e, portanto, do crime de ‘lesa-majestade divina’.” No entanto, para Portugal, não se pode dizer que o ponto em comum entre todas as práticas incluídas sob o termo “feitiçaria” pelas elites era de implicar necessariamente em conluio com o Demônio. Tal ideia não é universal nem generalizável, dado que, segundo Paiva, em muitos processos não há qualquer referência ao Diabo.

Ainda assim, tal personagem aparece constantemente fazendo parte do imaginário da elite letrada inquisitorial em relação às crenças heterodoxas. Segundo Bethencourt, “o conhecimento do oculto, na perspectiva da elite religiosa, só pode provir de três fontes: do estudo e do saber humano (limitado à cultura escrita); da revelação divina (reservada aos santos, beatos, homens piedosos tocados pela Graça); da intervenção diabólica (à excepção da profecia e da visão de origem divina, toda a adivinhação é uma arte demoníaca).” A possibilidade da ação demoníaca na vida cotidiana trazia consigo o medo e, consequentemente, uma tentativa de investigação e normatização de comportamentos religiosos considerados perigosos. Quanto à questão do medo, Delumeau coloca que Satã esteve mais presente entre os receios da elite eclesiástica que entre os do povo ou camponeses, e tal sentimento é essencial para perceber as atitudes das elites. Para Paiva, um dos motivos de não ter havido caça às bruxas em Portugal era justamente o medo, ou melhor, a ausência do medo, que geraria logo o ceticismo e a descrença por parte da elite e atitudes diferentes por parte dos acusadores. Nesse contexto, o grupo dirigente procurou sempre desmascarar o Diabo e seus agentes de forma a vencê-los, ou seja, além de temer suas “presenças”, procuravam identificá-las, administrá-las e bani-las.

Ainda nessa direção, vemos alguns aspectos da posição tomada pelos inquisidores em um Portugal peculiar – em comparação a outras partes da Europa que sofreram mais os efeitos do protestantismo – pela ausência de grandes ondas de pânico e uma caçada ferrenha a feiticeiros. Apesar de haver semelhanças com tais lugares na teoria dos doutos, os portugueses tomaram um outro posicionamento, mais cético e descrente.

Claro que acreditavam na existência de criaturas humanas que por meio de um pacto estabelecido com o Demônio podiam produzir a doença, a morte, a perdição de bens, mas ao relatarem estas opiniões não deixam transparecer um estado de terror e insegurança perante o fato. Ao contrário, nota-se até uma certa tendência para limitar os poderes diabólicos e por extensão o perigo latente dos seus “confederados”.

Isto se dava, principalmente, pela extrema confiança depositada em Deus, que afinal possuía poderes sobre o Diabo e sobre toda a humanidade, tudo podendo e tudo arrumando, e pela confiança nos poderes da Igreja, com seus sacramentos, rezas, cerimônias, doutrinas, e exorcismos que possuíam enorme valor salvífico. Talvez a própria força do catolicismo em Portugal tenha sido razão para este grande depósito de fé nas “forças do bem”. Além disso, a tradição tomista teve papel fundamental na configuração de tais posicionamentos.

O conjunto de crenças em relação ao mito da bruxaria na Europa era bastante amplo, mas o pacto diabólico foi um dos elementos mais marcantes, sendo a característica mais procurada pelos inquisidores portugueses. Aqui, pode-se ainda estabelecer uma diferenciação entre dois tipos de pacto ou invocação, como colocado por Bluteau, “consentimento que se dá aos embustes, e sortilégios dos que pretendem fazer coisas sobrenaturais por obra, e ministério do demônio; divide-se em pacto expresso, e tácito: pacto expresso é, quando se dá consentimento formal aos tais sortilégios; pacto tácito é, quando sem renunciar expressamente a todo o gênero de comércio com as potências do inferno, se põe em praxi, o que os seus ministros ensinam.” Havia então o pacto expresso ou explícito, no qual o mágico se dirigia diretamente ao Demônio, pedia algo e conscientemente assinava o contrato; e havia o pacto tácito ou implícito, que ocorria quando um objetivo era atingido sem que a pessoa tivesse feito uso de meios para isso, ou seja, o Diabo podia se imiscuir em situações, travando pacto tácito.

Uma categoria trazida pelo Directorium de Eymerich é a dos demonólatras ou invocadores do Diabo. Neste ponto, aparecem algumas comparações com situações da Bíblia, nas quais aparecem casos de invocação. Cita-se ainda a forma pela qual os maometanos invocam Deus, mas a maior parte das considerações é tecida de acordo com livros de necromantes, em especial um intitulado Tesouro da Necromancia. Tais demonólatras podiam ser considerados tanto como “mágicos” (dada a estreita relação entre os agentes de feitiçaria e o Demônio) quanto como hereges. É feita, portanto, uma separação – baseada no tipo de invocação e de adoração demoníaca – que traria facilidade para o inquisidor catalogar cada caso.

1. Quem invoca o demônio prestando-lhe culto de latria, e confessa isso ou está juridicamente convicto disso, não será considerado nem adivinho nem mágico, e sim herege. (...)
2. Quem invoca o demônio, sem, entretanto, prestar-lhe culto de latria, mas de hiperdulia ou de dulia, como foi explicado anteriormente, e que confessa ou está juridicamente convicto disso, não será considerado adivinho, e sim herege (...)
3. Quem invoca os demônios utilizando práticas cujo caráter látrico ou dúlico não é claro, será, entretanto, considerado herege e tratado como tal, por causa da gravidade da invocação. Invocar tem, efetivamente, na Sagrada Escritura, o sentido de praticar um ato de latria: não se pode, portanto invocar o diabo e cultuar a Deus. O inquisidor deve examinar com bastante atenção a finalidade deste terceiro tipo de invocação, pois, se o invocador espera do diabo qualquer coisa que ultrapasse os limites e os poderes da própria natureza do invocado (conhecer o futuro, ressuscitar os mortos, prorrogar a vida, levar alguém ao pecado etc.), estará confessando sua própria heresia, já que estará tratando o diabo como uma divindade.

Observa-se que havia um cuidado, um detalhamento um tanto minucioso na catalogação dos invocadores do Diabo, para que não houvesse dúvidas quando um caso fosse examinado. Isso se torna até um pouco exagerado quando percebemos que foi despendida uma grande quantidade de energia para exemplificar e detalhar aquilo que poderia facilmente ser resumido em uma frase: qualquer invocação ao Diabo é herética.

No Malleus, coloca-se que existem duas formas de se fazer o “juramento sacrílego”, sendo uma delas pública, entre outros bruxos, e uma privada. Em relação à primeira diz:

A cerimônia solene é realizada em conclave, com data marcada. Nela o diabo aparece às bruxas em forma de homem, reclamando-lhes a fidelidade que será firmada em voto solene. Em troca, promete-lhes a prosperidade mundana e longevidade. Depois, as feiticeiras [note-se o termo] recomendam-lhe uma iniciante – uma noviça – para seu acolhimento e aprovação, a quem o diabo então pergunta:
– Juras repudiar a Fé e renunciar à santa religião Cristã e à adoração da Mulher Anômala? – porque assim chamam a Santíssima Virgem Maria. – Juras nunca mais venerar os Sacramentos?
Se então parece-lhe que a nova discípula está disposta a assentir com o que lhe é pedido, estende-lhe a mão, ao que ela responde fazendo o mesmo, e de braço estendido, firma o juramento e sela o próprio destino. Feito isso o diabo prossegue:
– Ainda não basta.
– E o que mais há para ser feito? – indaga a discípula.
– É preciso que te entregues a mim de corpo e alma, para todo o sempre, e que te esforces ao extremo para trazer-me outros discípulos, homens e mulheres. – E assim prosseguem na preleção, explicando-lhe como fazer a pomada especial dos ossos e dos membros de crianças, sobretudo de crianças batizadas; e por tudo isso, e com a sua ajuda, ela se verá atendida em todos os seus desejos.
Disso retiramos vários aspectos, primeiro o do ajuntamento com outros bruxos, sendo forte a caracterização do sabá; em segundo a promessa do Diabo, que oferece coisas em uma troca simbólica pela fidelidade e pela alma; em terceiro a apostasia da fé católica, em que são renegados os sacramentos e a crença nas divindades celestes; em quarto, a encomenda da alma, que passa a pertencer não mais a Deus mas ao Diabo; em quinto o pedido de que se traga outras pessoas para o conluio demoníaco, sobre o que o Malleus coloca um capítulo específico (“Dos métodos pelos quais os Demônios, por intermédio das Bruxas, Aliciam Inocentes para Engrossar as Fileiras de Suas Hostes Abomináveis”); em sexto o ungüento a ser espalhado pelo corpo, que em certos relatos possibilitava o voo ou a metamorfose; e por fim a própria morte de crianças, que fazia parte da crença que as bruxas as matavam para oferecê-las aos demônios, chupavam seu sangue, ou as “chuxavam”.

Como uma segunda forma de pacto, este feito secretamente, em sigilo, o Malleus coloca aspectos que parecem se relacionar mais ao pacto implícito que ao explícito. É o seguinte: “Às vezes, quando homens e mulheres são atingidos por alguma aflição corpórea ou temporal, o diabo lhes aparece, por vezes, em pessoa, noutras lhes fala pela boca de outro indivíduo; e promete-lhes, se assentirem a seus conselhos, que por eles fará tudo o que estiver ao seu alcance. Mas nesse caso começa pedindo-lhes pequenos favores e prossegue, gradualmente, para exigências cada vez maiores.”Nesse caso, o Diabo não é procurado ou invocado, ele simplesmente aparece em um momento aflitivo e começa suas seduções. As características de sedutor do Demônio estão presentes também na opinião teológica portuguesa, que “prefere acentuar as suas características de caluniador, enganador de espíritos fracos e tentador malicioso, cujo poder junto dos homens é limitado pela autoridade divina e cuja índole não é totalmente malévola.” Quer dizer, ele age com a permissão de Deus, podendo se manifestar para as pessoas e tentá-las.

Além disso, o contato com o Demônio podia se expressar no próprio corpo dos acusados através de manchas diabólicas ou punctum diabolicum, sendo que “a procura destas marcas (sinais anatômicos) ou de zonas de sensibilidade, era um procedimento usual em muitas regiões da Europa e filiava-se na ideia de que depois do pacto diabólico o Diabo marcava os seus discípulos.” Neste contexto insere-se a aplicação de testes para verificar a presença de tais marcas, sendo bastante conhecido o “teste da agulha”, no qual um cirurgião – na presença do juiz e de um grupo de inquisidores – sondava o corpo inteiro do acusado, picando-o com agulhas. Segundo a teoria, o lugar tocado pelo Diabo era insensível, ou seja, não sangrava e/ou não causava dor. O pacto podia, então, tanto ser “encontrado” no corpo quanto confessado por relatos, mas podia ainda ser subentendido pelas ações realizadas por aqueles que estavam sendo acusados.

Nesta direção, ações como aquelas das práticas mágicas podiam fortemente servir ao Santo Ofício como indícios da presença do Diabo e do pacto travado com este. Em suas análises de autores protestantes, Clark notou que “praticar a magia benéfica, ou promover os que o faziam, era fazer ao menos um pacto implícito com o diabo e, assim, ser tão bruxa quanto qualquer causador de maleficium [...sendo que] a ideia de pacto implícito foi absolutamente fundamental para a demonologia clerical.” A questão do pacto era uma preocupação chave para os membros da Inquisição portuguesa, aparecendo em muitíssimos casos relacionados ao Tribunal. Fizemos uma listagem e uma contagem dos tipos de culpas que aparecem nas listas de autos de fé que temos trabalhado. Em todas as três, o pacto com o Demônio encabeça os tipos de delitos: na Inquisição de Lisboa, dos 87 casos de mágicos que aparecem entre 1720-1767, 67 contam com pacto; em Évora, dos 95 casos entre 1720-1763, 83 estão ligados ao contrato diabólico; e no tribunal de Coimbra, dos 231 réus do intervalo de 1720-1762, 196 teriam feito pacto. Na estatística geral das três inquisições, dos 413 indivíduos saídos em auto de fé por qualquer tipo de prática mágica, 346 “venderam a alma ao Diabo”, o que equivale a quase 84% do total de casos.

Nas listas do tribunal lisboeta, aparecem basicamente (com poucas variações) duas expressões diferentes: presunção de ter pacto com o Demônio, e ter pacto com o Demônio, a quem reconhecia e adorava por Deus. Não foi possível ler e analisar todos os processos dos sujeitos que aparecem, de alguma maneira, como tendo contato diabólico, motivo pelo qual não sabemos como foram as confissões e o andamento dos casos para que se chegasse a uma ou outra conclusão. Mais a frente, analisaremos dois casos com presença de pacto (não apenas presunção) e adoração: lá retomaremos a terminologia usada na lista de auto de fé, não os incluindo agora, mesmo tendo ocorrido em Lisboa. De qualquer forma, além daquelas duas expressões, outras são interessantes por trazerem mais algum detalhe ou alguma diferença com o resto, como os exemplos que se seguem.

Em 1731, um padre José da Souza Azevedo, clérigo do hábito de S. Pedro, fez o Diabo vir à sua presença em forma de um cágado, travando pacto com ele. Sobre uma Margarida Ferreira, que sai em auto em 1749, além de se colocar que fez pacto e adoração, sublinha-se ter sido pacto explícito, sendo que o mesmo é válido para uma Maria Esteves no auto de 1750 e uma Conceição de Jesus no auto de 1752. Há uma Bernarda Maria, culpada de feitiçaria, pacto e outros delitos em 1750, que se diferencia por atribuir as ações más que praticava a violências do Demônio. Essa culpabilização ou troca de responsabilidades eventualmente desaparece, mas voltaremos a isso oportunamente. Se bem que, segundo Bethencourt, “a teoria do poder meramente ilusório do demónio parece ser aquela que prevalece, sobretudo ao nível das elites, o que se enquadra na ideia do livre arbítrio e de uma maior responsabilidade dos homens pelos seus actos.” No caso de uma Mariana Inácia de Jesus, que sai no auto de 1761, o contato diabólico também aparece de forma diferente, pois essa ré fingia ser vexada do Demônio, o que recai em toda uma questão do fingimento, que também trabalharemos melhor no Capítulo seguinte.

Na Inquisição de Évora, também há alguns casos que se diferenciam daquelas fórmulas de presunção de pacto e ter pacto e adoração. Em 1725, sai em auto um Inocêncio Tavares por invocar o Demônio fazendo-lhe um escrito firmado com seu próprio sangue. Apesar de parecer a maneira “clássica” de feitura de pacto, o fato disso ter sido explicitado na culpa desse réu demonstra que nem sempre o pacto era levado a cabo dessa forma. Em 1732, há uma Joana Fernandes, a Carneira de alcunha, que sai em auto por fazer pacto expresso com o Demônio, por invocá-lo, dar-lhe adoração, e culto puramente exterior. Essa diferenciação é interessante, como se a ré não tivesse introjetado interiormente o culto ao Diabo, ao mesmo tempo que o invocava e adorava; mas apenas a leitura de todo o processo esclareceria o motivo dessa diferença. E um Manoel de Valhares sai em 1736 por invocar o Demônio expressamente para que o ajudasse.

Por fim, o tribunal coimbrão, além da grande maioria seguir aquelas mesmas duas fórmulas, tem os casos que se seguem. Um Giraldo Nobre Ferreira, que sai em 1720 por invocar o Demônio fazendo-lhe um escrito, obrigando-se a servi-lo no que lhe pedisse, se o mesmo lhe aparecesse em forma de negro e o ajudasse em certa pretensão. Em 1723, um Francisco de Souza usava da intervenção do Demônio para descobrir tesouros ocultos. Essa prática não parece ser incomum, pois existem alguns outros casos em que se relata a mesma coisa. No mesmo ano, um Antônio Fernandes de Mesquita e um João Mendes aparecem com as mesmas culpas de invocar o Demônio com cerimônias e ações supersticiosas, para que lhes aparecesse e desse dinheiro, também com presunção de fazer pacto. No mesmo auto de fé, outros casos se assemelham, mas com algumas diferenças: sai um Domingos Martins Boledo, por procurar, por arte e intervenção do Demônio, descobrir tesouros ocultos, levando-lhe ofertas para esse fim, e presunção de pacto; um Padre Manoel Ferreira, por invocar o Demônio com atos e sinais de culto e adoração, para que lhe aparecesse e trouxesse dinheiro, e presunção de pacto; um Antonio Vieira por invocar o Demônio e o procurar por familiar para que lhe aparecesse, trazendo-lhe dinheiro, descobrindo-lhe tesouros e coisas ocultas, além de presunção de pacto; e um João Antônio, o Pastor de alcunha, por dar adoração ao Demônio, reconhecendo-o por Deus, falando-lhe muitas vezes e obrando, por sua intervenção e ensino, coisas extraordinárias. Em 1726, um Custódio Fernandes aparece por cooperar para que se invocasse o Demônio com certas ofertas, esperando do mesmo que, por meio de artes vãs e fatos supersticiosos, trouxesse dinheiro e descobrisse tesouros. Por todos esses casos, vê-se que o Diabo era bastante procurado por bens materiais, de forma a que o indivíduo que oferecesse a alma enriquecesse e tivesse uma vida mais próspera. Uma Catherina Fernandes sai no auto de 1728 por renegar da fé católica (configurando como apostasia) persuadida pelo Demônio, tendo-o e adorando-o por Deus, e esperando dele a salvação. No auto do ano seguinte, aparece uma Margarida Mendes que, além de presunção de ter feito pacto, teria tido o aparecimento do Demônio algumas vezes, em que ele lhe prometera que a ajudaria nas curas que fazia. Sendo esse mais um caso em que, na listagem de autos de fé, se explica o motivo do contato diabólico, pois na maior parte das vezes isso não fica explicitado.

Em 1730, um Simão de Figueiredo, além da presunção de pacto, teria oferecido sua alma ao Demônio, dando-lhe pingos do seu sangue; e um Manoel Purieiro sai em auto por presunção de pacto e por ter tido algumas práticas com o Demônio, mas que não conhecemos por não serem especificadas na lista. No mesmo ano, uma Maria de Andrade e uma Maria Teresa, da mesma forma que uma Domingas Martins Ortega no auto de 1732, teriam feito pacto, adorando o Demônio e esperando dele a salvação, o que é interessante se pensarmos em como a ideia de salvação aparece nos processos dessas rés. Em 1739, há um detalhe do caso de Joana Araújo que é o de, além de fazer pacto, apartar-se da fé católica, o que nos faz pensar na sutileza de cada caso, na medida em que, pelo jeito, nem sempre a heresia do pacto implicava na apostasia da religião. Em um dos processos que veremos com detalhes posteriormente, isso aparece de uma forma bastante interessante. Há uma outra presunção de pacto com o intuito de descobrir tesouros no auto de 1753, feito pelo réu Domingos Rebelo da Silva. Em 1756 aparece um João Pinto, que teria invocado o Demônio com o mesmo intuito.

Percebemos, portanto, que as maneiras pelas quais os réus travavam contato com o Diabo, como faziam pacto, como o Demônio aparecia, assim com as expectativas e os motivos para o pacto, eram bastante diversas. De qualquer forma, fosse como fosse que esses aspectos aparecessem, todos se configuravam como heresia e, por vezes, como apostasia. Bethencourt coloca que uma exigência de base na relação diabólica consistia em renegar Deus e adorar o Demônio, mas nem sempre funcionava dessa forma, como vimos pelos casos das listas dos autos de fé. Nessa direção, e a respeito de como funcionavam as confissões dos réus, Paiva esclarece o seguinte: “Estas confissões tinham habitualmente uma estrutura tripartida. Primeiro confessava-se o pacto, depois contavam-se algumas histórias que envolviam a relação com o Diabo (como e quando aparecia, actos sexuais que com ele se mantinham, mais raramente ida a ‘sabats’), finalmente, e num número muito exíguo de casos, obtinha-se dos réus a anuência de que creram no Diabo como seu Deus, que o adoraram, tendo nesse tempo renegado de Deus e da Igreja.” Ou seja, a apostasia de fato não era o denominador comum de todos os casos em que a relação demoníaca acontecia. Retomando a pergunta inicial, do que era realmente perseguido, respondemos que, em grande parte, era o pacto com o Demônio, a presença de heresia e apostasia. No início do Livro III do Regimento de 1640 já está posto: “Contra os hereges, e apostatas, que sendo cristãos batizados, deixam de ter, e confessar a nossa santa fé católica, e se apartam do


grêmio, e união da Santa Madre Igreja”, sendo contra isso que o Santo Ofício lutava. Como vimos no Capítulo 2, a partir de certo momento a Inquisição pode abarcar casos mesmo sem presunção de heresia, ou seja, podia processar e ter sob sua alçada mesmo crimes não heréticos. Contudo, mesmo assim, na maior parte dos casos ainda se procurava a relação diabólica, confirmando o caráter de heresia do caso confessado. Em relação à apostasia, parece ser muito mais rara, sendo mais difícil obter uma confissão de adoração do Diabo e afastamento total da fé católica, de maneira que em alguns casos o réu insiste em dizer que, mesmo tendo feito pacto com o Demônio, nunca se apartou da fé, como veremos.

De acordo com essas questões, a heresia e a apostasia eram as grandes preocupações da Inquisição, e seus membros estavam sempre atentos para a presença diabólica nos casos e relatos dos réus. Afinal, a relação demoníaca trazia diversos problemas, como o afastamento de um membro da cristandade do seio da Igreja, ou seja, uma “perda de rebanho” por parte desta; a brecha existente no controle e normatização inquisitoriais, dado que demonstra um desvio da norma; o poder que o Diabo concedia àqueles que travavam o pacto, trazendo à tona a capacidade de provocar o mal; e o medo causado pela presença diabólica e seus agentes.”

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É isso!

Fonte:
Ana Luiza de Oliveira e Silva: “Nova configuração da Inquisição Portuguesa em meio a Iluminados e Iluministas: 1720-1821”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Mestre em História. Orientador: Prof. Dr. Adone Agnolin). Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009.

Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
Eduardo
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