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Ciência e Poder
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02022011
Ciência e Poder
Ciência e Poder
“A filosofia natural era, de muitas formas, um empreendimento novo na Europa do século XVII, lutando para ser reconhecida nas hierarquias estabelecidas. Sua relação com a Igreja e o Estado e seu papel na sociedade estavam em constante alteração. Questões importantes sobre a natureza da nova ciência – seus ideais e métodos, seus limites e quem poderia estabelecê-los – restavam ser respondidas. Neste ponto central, os filósofos naturais esforçavam-se por se libertar das restrições, algemas ou prisões da universidade medieval e estabelecer novas instituições que correspondessem às suas necessidades.
As modernas instituições científicas tiveram suas origens no mundo medieval, particularmente nos monastérios e nas universidades européias. Do século XII ao XV, as universidades eram os centros do saber, defendendo as tradições religiosas e os interesses do mundo feudal e deles sendo portadoras. As universidades medievais eram um poderoso instrumento do poder da Igreja, determinando o que deveria ser ensinado com base nos textos sagrados, e todo o seu o sistema pedagógico fundamentava-se na escolástica, preparando quase exclusivamente eclesiásticos e juristas. Nessas instituições, não havia lugar para as ciências da natureza. Em Paris, em 1355, foi autorizado o ensino da geometria euclidiana apenas nos feriados. Os principais manuais de “ciências naturais” eram os livros de Aristóteles, dos quais todo o conteúdo vital havia sido expurgado. E é de Aristóteles que conhecemos uma das primeiras classificações de poder nas suas diversas faces, como é usado e distribuído. Portanto, a chave para a compreensão desse poder pode ser encontrada na cultura grega, alexandrina e romana, raízes da ciência moderna.
O pensador Epícuro, nascido em Samos em 342 a.C., teve como mestres Platão e Demócrito. Ao sentir a sua impotência ante ao poder do Estado, procurou a sua interiorização buscando uma perfeição moral independente do mundo exterior e do poder temporal. Percebeu que o conhecimento da natureza deveria possibilitar uma visão de mundo onde o ser humano pudesse inspirar-se para libertar a sociedade da superstição e da tirania. Dizia ainda:
O estudo da natureza não pretende apenas permitir que o homem proclame e demonstre o seu conhecimento diante do seu próximo, mas, pelo contrário, produzir indivíduos sérios independentes, capazes de apreciar as qualidades verdadeiras e pessoais e não apenas a aparência exterior. Explicar um fenômeno é mais importante do que a sua real ocorrência.
Epícuro instalou sua escola em Mitilene e, seguindo a tradição dos pitagóricos, aceitou mulheres e escravos. As suas idéias tornaram-se a doutrina do povo, em contraponto ao estoicismo130 que se constituía na filosofia das classes privilegiadas. Instituiu-se assim o primeiro embate histórico entre a Ciência e o poder constituído. Os epicuristas usavam a Ciência para tentar reformar a teologia, em uma tentativa de separar a religião das leis da natureza, para conseguir uma forma de defesa contra o poder autoritário. As idéias de Epícuro propagaram-se por todo o mundo helênico, chegando até Roma.
Na antiga Mesopotâmia, conhecida por muitos como o berço da humanidade, os conhecimentos sobre a manipulação da matéria eram transmitidos oralmente para os chamados “iniciados”, os futuros conhecedores daquela prática. Eram registrados nos tabletes de argila de forma velada, utilizando freqüentemente uma chave de interpretação que era conhecida por poucos: “os iniciados”. Esses registros traziam sempre formulações e procedimentos para a manipulação da matéria, passados de mestre para discípulo a fim de que esse conhecimento não fosse perdido. Assim registrados impedia-se que caíssem na mão do público. Esse era o iniciado, aquele que era capaz de ler essas fórmulas.
Conferiam à manipulação da matéria um ato sagrado, por estarem imitando a natureza. O mineral era comparado a um feto e evoluiria para a sua forma mais pura, um metal. O forno era uma cópia do ventre materno, a própria Terra, responsável pelas transformações, logo era preciso sacralizar o forno. Para isso sacrificavam fetos humanos ou animais. Também os corantes, perfumes e medicamentos eram considerados aprimoramentos daquilo que a natureza podia ofertar, portanto, um conhecimento sagrado que deveria ser velado, uma forma de preservar o poder.
Por meio, principalmente, dos árabes, muitos desses textos, juntamente com originais gregos antigos, chegaram à Europa medieval, onde passaram a ser vistos como portadores de um segredo antigo. Aquele que conseguisse decifrá-lo seria o detentor de um poder talvez tão antigo como a própria humanidade.
Durante a Idade Média, esse conhecimento ficou restrito aos monastérios e às universidades que tinham um caráter elitista. Entre os séculos VI e XI, a Igreja possuía o monopólio da alfabetização e educação, e os filhos dos senhores feudais tornavam-se membros dos monastérios, o que se tornou a única opção para a educação feminina e acabou por fornecer um número considerável de mulheres eruditas.
Com o decorrer do tempo e o surgimento do livro impresso, compilações de receitas provenientes da Antiguidade e do medievo, bem como manuais práticos e tratados técnicos, passaram a ser publicados e distribuídos pela Europa divulgando esse conhecimento. Assim, no Renascimento, observamos o surgimento de uma nova ordem social para a Ciência que começou a ser discutida em outros lugares: nas pequenas aldeias, nas paróquias e nos salões dos nobres. Esses últimos, que eram instituições femininas por excelência, ofereceram uma real alternativa para a organização da vida intelectual. É interessante observar que nos locais onde a Ciência emergia em uma determinada sociedade (grupos), como nas cortes renascentistas, as mulheres se destacaram como sábias.
Esse tipo de conhecimento sobre a natureza não podia ser obtido nas universidades da época. Assim, a nova ciência cresceu em litígio com as universidades, como uma ciência não-universitária a serviço das necessidades da burguesia emergente. Essa luta, no âmbito ideológico, era reflexo da luta de classes entre o sistema feudal. Era o jogo do poder na Ciência que cresceu passo a passo com a ascensão e desenvolvimento da burguesia que necessitava, para desenvolver sua indústria, de uma ciência que pesquisasse as propriedades materiais dos corpos e as formas de manifestação das forças da natureza. A Ciência deixava agora de ser uma serva fiel da Igreja, ultrapassando as fronteiras da fé. Assim, a burguesia entrou em conflito com a igreja feudal.
O prestígio da Ciência aumentou no decorrer dos séculos XVII e XVIII, enquanto que o da aristocracia diminuiu e cedeu seu lugar, em importância, para as atividades científicas. As universidades deixaram de ser o centro da vida intelectual. A ciência moderna emergiu de uma grande variedade de grupos, incluindo ateliês, salões informais e academias reais.
A nova forma de pensar introduzida pela ciência experimental possibilitou a formação das academias científicas. Fundadas sob a proteção dos reis, originaram-se dos salões e universidades. As maiores academias científicas foram fundadas no século XVII: a Royal Society of London, em 1662; a Parisian Academie Royale des Sciences, em 1666 (transformou-se em 1816 na Académie des Sciences); a Societas Regra Scientarum em Berlim, em 1700 (depois denominada Akedimie der Wissenschaften). No final do século XVIII, elas existiam em toda a Europa. Quando o cetro do conhecimento passou das cortes para as academias, a Ciência deu um primeiro passo para adquirir um caráter profissional.
As academias do século XVII perpetuaram as tradições renascentistas de misturar conhecimento com elegância para acrescentar graça à vida e beleza à alma. A Academie Royale des Sciences mantinha seu programa de convivência com jantares e entretenimento musical, observando todas as regras de etiqueta presentes nos salões. Os membros da academia ocupavam posição de homens (funcionários) públicos, eram assalariados e contavam com privilégios e proteção real.
A academia assumiu o papel de dizer qual a ciência correta. As novas descobertas eram apresentadas por um dos membros, e as discussões que se seguiam quase sempre se baseavam nas evidências experimentais disponíveis. Buscava-se um controle da qualidade do conhecimento.
Nenhuma dessas instituições aceitou qualquer mulher antes da metade do século XX (em 1945, Royal Society of London). Essa academia, ideologicamente, tinha como principio aceitar pessoas das diversas camadas sociais, nações, profissões ou crenças. Mas, de fato, apenas 4% de seus membros eram comerciantes. A maioria compunha-se de homens de elevada posição social e conhecedores da nova ciência, o que permitia a concretização de um novo domínio, o poder do conhecimento.
Durante a Revolução Industrial, o poder e a Ciência mudaram de mãos.
A ciência tornou-se um empreendimento de grupo e uma arma organizacional capaz de influenciar profundamente a estrutura política do poder, o sistema econômico de produção e o clima social e intelectual global.
A Revolução Industrial e o capitalismo decorrente determinaram o surgimento de uma nova sociedade fundamentada em um novo conceito de poder e contando com a Ciência em lugar dos valores tradicionais.
O mundo contemporâneo estruturou-se sobre o saber científico. A Física dominou todo o século XX com a corrida espacial, a mecânica quântica etc. Os conflitos ciência-poder podem ser ilustrados com o tenso diálogo entre Niels Bohr e Winston Churchil, quando o cientista alertou o político para que os Aliados não produzissem a bomba atômica durante a Segunda Guerra Mundial. A proposta de Bohr era revelar o segredo do artefato nuclear para todos, pois sabia que os soviéticos tinham condições de reproduzir a bomba. Com a revelação, Bohr pensava que se chegaria ao desarmamento dos países e teríamos paz e equilíbrio.
Existe uma percepção popular sobre os cientistas como os donos da verdade. A sociedade olha a Ciência pela ótica da admiração e do temor dos progressos científicos. Temor, porque não conhece os seus limites. Admiração porque todos os dias novas descobertas e instrumentos modificam as nossas relações com a natureza e com a sociedade. O movimento dos laboratórios de pesquisa parece escapar a todo controle. A distância entre teoria e suas aplicações práticas é curta. As técnicas percorrem-na com grande rapidez.
O motor do movimento da ciência é identificado como sendo a razão. A verdade, o retrato fiel do que é, o modelo consistente da realidade são expressões de sua realização como instrumento de ação. A razão lê, interpreta e modifica o mundo. Não se pediu permissão ao poder, que financia as pesquisas, ou ao mercado da economia, para dar asas à Internet ou associar uma dupla hélice à imagem do DNA. A razão quer prestar contas à verdade, assim como ela é. Isso incomoda o poder. Ele reconhece a autonomia do mundo científico, obediente aos rigores da razão, mas não esconde que essa autonomia o incomoda. O poder busca no consenso o motor de seu movimento. A política faz uso da persuasão como instrumento para alcançar o bem comum. Quando o consenso não é alcançado e o poder, contrariado, a força é o meio de dominação.
O governo concede financiamentos à Ciência para que ela atinja determinados objetivos, para que realize pesquisa, sem conhecimento de pormenores e procedimentos técnicos e, portanto, sem controle efetivo. Desse modo, a Ciência dita ao governo o que fazer, como e com que rapidez.
Quem se responsabiliza pelos novos conhecimentos? As universidades, que continuam sendo denominadas de academias?
Quem começa a assumir o poder sobre a Ciência? Os governos, que financiam os laboratórios, que financiam as pesquisas e as indústrias?
A produção de novos alimentos em laboratórios teve aumento significativo nos últimos tempos. Os transgênicos, que já chegaram às nossas mesas, são um exemplo típico desse fato. As incertezas quanto aos impactos econômicos, sociais e ambientais das novas tecnologias passam a exigir uma avaliação cada vez mais acurada. Nesse particular, a Ciência assume um papel relevante nos processos de regulamentação da adoção de novos produtos. Os cientistas tornam-se os principais mediadores da relação da sociedade com o risco, com o poder de antecipar os perigos futuros e decidir acerca a aprovação de novos alimentos. No entanto, a Ciência tem seus critérios de cientificidade contestados em virtude das suas relações com a indústria. Agências reguladoras como a FAD perdem sua credibilidade. A sociedade exige maior controle social da atividade científica.
A ciência adquiriu o poder de determinar o que poderá ser aprovado e liberado para consumo humano. Em todo o mundo, as agências responsáveis pela aprovação de novos alimentos lançam mão de pesquisas científicas e consultas a especialistas para respaldar suas decisões. A neutralidade confere status de decisão à ciência.
A construção da bomba atômica, na fase final da Segunda Guerra Mundial evidencia como a ciência não pode ser separada da sociedade em que está sendo desenvolvida. Ela não pode desenvolver-se ignorando a realidade política à sua volta. Arquimedes, por volta de 250 a.C., colaborou com o reino de Siracusa, desenvolvendo diversas máquinas de guerra. A Ciência não é um conhecimento neutro, pois ela é financiada pela classe dominante e pelos estados poderosos, bem como as principais instituições: a universidade, a mídia, ou seja, a classe dominante.
Vivemos em uma época na qual a Ciência demonstra todos os dias o seu poder. O conhecimento que ela produziu venceu distâncias, diminuiu carências, reduziu doenças e possibilitou a compreensão de muitos mistérios da natureza. No entanto, ainda hoje, pouca gente percebe a importância da Ciência em sua vida. Existe a influência explicita, associada às diversas tecnologias que definem o estilo de vida da sociedade moderna. Fica difícil imaginar a vida atual sem automóveis, telefones celulares, fornos de microondas, computadores etc. No entanto, a Ciência assusta, é faca de dois gumes. Por vezes, parece acontecer como mágica, em laboratórios clandestinos controlados por cientistas influenciados pela fama e manipulados por financiadores que apenas se interessam apenas no balanço final de suas empresas ou por militares obcecados pelo poder.
A posição da ciência no mundo moderno pode ser analisada como resultante de dois conjuntos de forças em conflito que aprovam ou se opõem à ciência como atividade social. A hostilidade pode originar-se de fatores políticos, humanitários, econômicos e religiosos, apoiada no fato de que os resultados ou os métodos são contrários às satisfações de valores importantes, ou ainda da incompatibilidade entre os ethos científicos e os que se encontram em outras instituições.
Freqüentemente, o pesquisador não determina onde ou como serão usados os resultados de suas pesquisas. Na medida em que tais usos sejam reprovados, a antipatia recai sobre a própria Ciência. Também raramente reconhecido é o fato de que pela elaboração complexa das ciências existe um abismo crescente entre o cientista e o leigo, que vê com desconfiança essas teoria estranhas, ainda que sua aplicação beneficie a sociedade como um todo.
Nas mãos da ignorância, a ciência é rapidamente transformada em um monstro, causando um conflito estranho nas pessoas: por um lado, a sociedade é cada vez mais dependente das várias amenidades e confortos da vida moderna. Por outro lado, a ciência também ameaça, cria armas de destruição global e local, podendo até comprometer nossa posição como espécie dominante da Terra.
Há uma necessidade cada vez mais premente de reconhecer a natureza global das decisões de política científica, e outra de estabelecer uma nova relação entre a Ciência e o poder, que reconheça essa dimensão internacional.
Poder é uma palavra incrivelmente emocional. Diante dela são infinitas as nossas reações. Sem poder (ser capaz) não há ação ou movimento. O poder como um ato de sabedoria, e não como instrumento para manipular pessoas, é a capacidade e habilidade de mudar as nossas vidas. Conhecimento é poder: poder de produzir, de prever e de prevenir. Aplicar esse conhecimento em benefício da humanidade é sabedoria. Conhecimento e sabedoria são os dois principais pilares de um futuro comum melhor.”
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Fonte:
DIAMANTINO FERNANDES TRINDADE: “O OLHAR DE HÓRUS: UMA PERSPECTIVA INTERDISCIPLINAR DO ENSINO NA DISCIPLINA HISTÓRIA DA CIÊNCIA”. (Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Educação, sob a orientação da Professora Doutora Ivani Catarina Arantes Fazenda). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC. São Paulo, 2007.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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Inscrição : 08/05/2010
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