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Tolkien e C.S. Lewis: um diálogo
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18022011
Tolkien e C.S. Lewis: um diálogo
J.R.R. Tolkien e C.S. Lewis: um diálogo
Gabriele Greggersen
Falar de uma amizade como a de Tolkien e Lewis hoje, exige um artigo à parte. Primeiro, porque não se sabe mais muito bem o que vem a ser isto e segundo, pelos bons frutos que este diálogo trouxe para o legado cultural da humanidade e particularmente para o mundo cristão. Como dizíamos em um livro sobre a ética de O Senhor dos Anéis: Da Fantasia à Ética – (Editora Ultimato), muitos leitores ignoram que o que os uniu foi sua fé cristã, bem como da contribuição de ambos para a cultura em geral e particularmente, para a filologia (no caso de Tolkien) e para a literatura (no caso de Lewis). Enquanto C.S. Lewis é mais conhecido no meio cristão, tanto protestante, quanto católico, a profunda fé de Tolkien não é muito levada em conta por muitos dos seus fãs e fã-clubes, que o veneram somente pelas riqueza das suas fantasias, línguas e mundos que criou. Na verdade, temos fortes razões para acreditar que Lewis foi o melhor amigo de Tolkien em Oxford, embora a amizade de Lewis tivesse se dividido por algum tempo entre Tolkien e outro autor, Charles Williams, por quem Tolkien não tinha tanto apreço, e com a sua esposa, Joy, com quem se casou já na proximidade dos sessenta anos de idade e que certamente também contava entre suas melhores amigas (Lewis tinha várias amigas mulheres, também, coisa que para um intelectual daquela época era bastante incomum). De fato ambos tinham muito em comum, fato que Lewis sintetiza em sua autobiografia como o esforço pela “quebra de preconceitos”, particularmente entre os cristãos, para quem eles caem particularmente mau:
Tanto Tolkien quanto Lewis defendiam que o profissional, seja das letras, seja da educação ou outra “ciência humana” deve se valer de várias áreas do conhecimento na sua busca pela verdade, não apenas pela via da razão, mas também usando um importante mediador: a imaginação. Com isto, eles se colocavam contra o pensamento predominante na sua época, pautada pelo racionalismo e iluminismo acadêmico. É preciso considerar ainda a rivalidade que pode haver entre um campo “prático” como a crítica literária, representada por Lewis, e a filologia, considerada mais analítica. Assim, ao invés de separa-los, a especialidade dos dois intelectuais redundou em uma importante complementação e no incentivo à efetiva interdisciplinaridade, beirando a transdisciplinaridade.
Assim eles faziam diferença, ficando conhecidos como os “cristãos de Oxford”. Na verdade, eles faziam críticas aos chamados “cientistas cristãos”, que seguiam os passos dos não cristão em termos de racionalismo e positivismo. Com relação à questão do mal e do sofrimento, por exemplo, Lewis os considerava , de uma maneira geral, demasiadamente simplistas, quando tentavam explica-los como meras “ilusões”. Se assim fosse, diz Lewis tal ilusão é que seria uma “monstruosidade” e o que é pior, “permitida por Deus.”[2]
Certamente os males não aparecem desta forma na obra de nenhum dos dois autores. O sofrimento também se destaca como algo realmente existente e, de fato, assustador para alguns, embora, por outro lado, ele não tenha substância. No fundo o sofrimento, que é até mais natural ao cristão, do que ao não-cristão, que pode fazer um estrago para se defender dele, é um grande mistério, que exige fé antes de tudo.
Outra crítica que ambos faziam aos cristãos na academia era a suposição de que o mal poderia ter sido “criado” por Satanás, ou que ele fosse capaz de “inventar” alguma coisa boa. Tudo o que ele sabe fazer é imitar e imitar mal. Com estes conceitos fortes e bíblicos, todos os críticos concordam que SenA, jamais poderia ser considerada alguma “historinha para ninar” sobre um mundo “cor de rosa”. O mesmo, diríamos, vale para as Crônicas de Nárnia. O mal existe mesmo e é feio. E sua desvantagem é que só o que ele sabe fazer é corromper e distorcer o que já existe. Neste sentido ele pode ser comparado mais a uma doença e não, do que a algum estado permanente ou “normal.” Esta ênfase antimaniqueísta é fundamental para entendermos ambos os autores e suas obras.
Além da preocupação com a relação entre ciência e cristianismo e a questão do bem e do mal, que aprofundaremos mais adiante, o que unia os amigos era o seu empenho em serem bons escritores e bons críticos, até mesmo do cristianismo. Para além do interesse acadêmico, eles mostravam também um forte interesse artístico comum, particularmente pela literatura. Mas o que coroava mesmo a sua amizade é o teológico. No caso de Tolkien, a contribuição literária e do campo da filologia fosse mais reconhecida do que a teológica e acadêmica. Entretanto, suas cartas e depoimentos dos Inklings revelam a importância de suas convicções religiosas.
Apesar do clima de disputa reinante na Oxford dos tempos de Tolkien e Lewis e de ambos terem sido até certo ponto vítimas de ciúmes e preconceitos pelo sucesso de suas obras de ficção e pela coragem com que se referiam a temas religiosos, eles não se deixavam intimidar facilmente. De acordo com Carpenter[3], Tolkien mesmo não escapou de revelar certa “inveja” da obra de Lewis e ciúme de certas amizades com autores de que ele não gostava muito. E a sua esposa, Edith, freqüentemente manifestava ciúmes em relação ao próprio Lewis, que sempre teve uma personalidade cativante. Entretanto, foi certamente a amizade entre os dois que inspirou grande parte do livro, dedicado por Lewis ao tema amor, Os Quatro Amores [4], particularmente no que tange à amizade.
Sua postura cristã é que permitia que ambos autores resolvessem suas diferenças de maneira tranquila, até mesmo as religiosas. Como se sabe, Tolkien manifestava certo ressentimento contra a igreja anglicana, a igreja da Inglaterra, por ter-se desviado do lar original do cristianismo, enquanto Lewis insistia que, ao se converter, sentia-se chamado a “voltar” ao seu lar original, a Igreja da Inglaterra.[5]
Para além destas pequenas diferenças, porém Tolkien e Lewis procuravam complementar-se tanto nos seus esforços acadêmicos e debates teológicos. Enquanto Lewis escrevia histórias paralelamente aos seus livros teológicos, Tolkien empenhava-se por criar uma mitologia para a Inglaterra com fundo inevitavelmente cristão. Enquanto Lewis denunciava o que ele chamava de “o processo linguístico inconsciente da degradação contínua de boas palavras e embotamento de distinções úteis”.[6], Tolkien criava as suas próprias palavras e línguas.
Em Studies in Words, Lewis prova que tinha consciência de que nenhuma palavra humana é eterna. Como tudo o que é temporal, a linguagem humana tende ao caos e à dispersão do seu sentido. Pode-se dizer assim, que as línguas inventadas por Tolkien tinham esta função de resgate dos sentidos perdidos da nossa própria linguagem. Estas preocupações em comum é que permitiam o diálogo entre os dois pensadores, que visivelmente desenvolveram um profundo respeito um pelo outro, inclusive por seu campo acadêmico, como se vê nestas palavras de Lewis:
Ouvi dizer que existe gente que gostaria mais que o estudo da literatura fosse completamente livrado da filologia; isto é, do amor e conhecimento das palavras. É provável que nem exista gente assim. Mas, se existir então, só podem ser lunáticos, ou candidatos ao tratamento de… alguma desilusão obstinada e fechada a sete chaves.[7]
Mas o maior sinal de respeito de Lewis em relação ao amigo e sua especialidade é o herói de seu trilogia espacial, Longe do Planeta Silencioso, Perelandra e Esta Força Medonha, o filólogo de Cambridge Randsom, numa clara homenagem ao amigo.
Tolkien por sua vez, também faz homenagens ao amigo, neste comentário por exemplo: “A amizade com Lewis é compensatória em muitos aspectos: além do prazer constante, o contato com um homem ao mesmo tempo honesto, corajoso, intelectual – um acadêmico, um poeta e um filósofo – e, depois de sua longa peregrinação, finalmente um amante do nosso Senhor – fez-me um enorme bem.”[8] E não se tratava de nenhuma admiração idealista ou acrítica. Apesar do respeito que Lewis tinha pelos filólogos, ele também reconhecia os seus limites, como se vê nesta comentário:
Como tantos outros acadêmicos e escritores, (Júlio Verne, Monteiro Lobato, Cervantes, Huxley, Guimarães Rosa, Orwell) Tolkien e Lewis descobriram que a via da imaginação e da ficção é a melhor para se dizer o que tem que ser dito, fazendo a crítica do seu tempo e contribuindo, assim, para a transformação da história.
Tolkien e Lewis também mantinham o saudável hábito de fazer a crítica às suas respectivas obras de ficção, em particular ou na roda de amigos, os mencionados Inklings. De acordo com Lewis, eles costumavam reunir-se para discutir literatura, mas acabavam fazendo algo “bem melhor”[12], isto é, teologia. Lewis mostrava-se crítico até em relação à reação do amigo às críticas em geral. Diz ele que Tolkien tinha duas reações a elas “ ou ele começa tudo de novo desde o começo, ou ele não liga a mínima.”[13] Evidentemente então a amizade não era sem atritos, mas qual amizade verdadeira e sincera poderia ser?
O que interessa para os nossos efeitos aqui é destacar que a amizade entre Lewis e Tolkien contribuiu muito para lançar pontes importantes para o diálogo, não somente entre os campos da linguística e da literatura, mas também entre estes campos e outras áreas das ciências humanas tais como a filosofia, a história, a educação e até a teologia.
No mencionado ensaio sobre SenA, Lewis arrola algumas razões, porque considera a obra “indispensável”, notando, em primeiro lugar, que não se trata de uma continuação de o Hobbit. Pelo contrário, o Hobbit é que é uma tentativa de adaptação de SenA para crianças. A intenção de O Hobbit era de apresentar o jeito de ser e viver “doméstico”, quase vulgar e anárquico, de boa índole, apesar da aparência não muito atraente, destes seres peculiares, que, segundo Lewis, só um inglês seria capaz de criar. Já em SenA, a ênfase está no contraste entre os hobbits e o seu destino. Sua existência depende de poderes insuspeitos e surpreendentes. O mais irônico de tudo é que o herói principal deste drama épico é hobbit, o mais frágil de todos os seres. Daí que Lewis também chamasse SenA de “romance heróico”, o que não representou para ele um retrocesso, como para certos críticos, e sim, um avanço. Trata-se de um exemplar único da capacidade de sub-criação de Tolkien, pela qual ele recria o mundo todo. O livro é assim reservado a leitores “predestinados”. Na verdade, conclui Lewis, SenA é um mito, que não serve como meio de escape da realidade, como julgam alguns, mas como pura e saudável “invencionice” e consciente das ilusões da vida ordinária.
O elemento de nostalgia e angústia presente na obra, pode não ter efeito muito relaxante para o leitor, e diríamos que isto se aplica ainda mais ao filme, mas ele pode (esta é precisamente sua intenção), sim, ser revigorador, trazendo-lhe novas esperanças em meio às suas próprias angústias. Assim, a arte “mitopoeica” de Tolkien põe em jogo emoções, leveza, virtudes e horizontes distantes, procurando retratar o caráter paradoxal da vida humano situada que está neste vão intermediário entre a ilusão e o estar desiludido.
Naquele ensaio, Lewis contesta ainda as acusações de dualismo na obra, como veremos mais detalhadamente a seguir, pois todos os personagens apresentam bons e maus aspectos misturados entre si. Não há pessoas, nem realidades “pretas” ou “brancas”. O melhor exemplo dessa mistura é Gollum. Contra a acusação de dualismo pesa ainda o fato de as coisas não acontecerem de forma aleatória, e nem tão pouco previsível em SenA. Não há relativismo, pois a ênfase está na providência divina que conduz tudo nos bastidores, mesmo que nem sempre de maneira visível. Lewis diz que Tolkien consegue tornar visíveis as almas invisíveis, trazendo para fora o que está dentro do coração. Desta forma, ele defende consistentemente a ideia de que a vida humana tem, de fato, este elemento heróico e mitológico, que só pode ser captado e devidamente “degustado” pelos que têm a simplicidade de uma criança no coração, como veremos a seguir.
NOTAS
[1] Duriez, The Lewis Handbook, Grand Rapids (MI); Baker Book, 1990, 214.
[2] Lewis, Letters, Nova Iorque: Harvest, 1993, 440 (Carta de 1954).
[3] Cf. Carpenter, J.R.R. Tolkien: a Biography, London: Haper Collins, 2002, 198 e 202.
[4] Lewis, Os Quatro Amores, 2a. ed., São Paulo: Mundo Cristão, 1986.
[5] Cf. Carpenter; 2002, 202 ss. Veja também Lewis, The Pilgrim´s Regress, Grand Rapids (MI): 1958.
[6] Lewis, God In The Dock, Grand Rapids (MI), Eerdmans, 1970, 333.
[7] Lewis, Studies In Words. Cambridge: Cambridge University Press, 1960, 3.
[8] Carpenter, 2002, 198-9.
[9] Lewis, C.S. Studies In Words. Cambridge: Cambridge University Press, 1960, 9.
[10] Carpenter, 2002, 158.
[11] Chance, Lord of the Rings, Kentucky: The University Press of Kentucky, 2001, 20-21.
[12] Lewis, Letters, 1993, 363 (Carta de 1941).
[13] Idem, 481 (Carta de 1959).
Abreviações SenA – O Senhor dos Anéis
O dom da amizade de Tolkien e Lewis
Escrito por Gabriele Greggersen | 12 Janeiro 2009
Falar de uma amizade como a de J.R.R. Tolkien e Lewis exige um artigo à parte. Primeiro porque, em nosso tempo, não se sabe mais muito bem o que vem a ser este tipo de amizade; e segundo, pelos bons frutos que este diálogo trouxe para o legado cultural da humanidade e do mundo cristão.
Segundo meu livro sobre a ética de O Senhor dos Anéis, chamado Da Fantasia à Ética, muitos leitores ignoram que o fator de união para ambos os autores foi sua fé cristã, bem como a contribuição de ambos para a cultura em geral e particularmente, para a filologia (no caso de Tolkien) e para a literatura (no caso de Lewis). Mas enquanto C.S. Lewis é mais conhecido no meio cristão, tanto protestante quanto católico, a profunda fé de Tolkien não é levada muito em conta por seus fãs. Tolkien é venerado somente pelas riqueza das suas fantasias, línguas e mundos que criou, e não pela sua religiosidade ou legado religioso.
Na verdade temos fortes razões para acreditar que Lewis foi o melhor amigo de Tolkien em Oxford, embora a amizade de Lewis tivesse se dividido por algum tempo entre Tolkien e outro autor, Charles Williams, por quem Tolkien não tinha tanto apreço, e com a sua esposa, Joy, com quem se casou já na proximidade dos sessenta anos de idade e que certamente também contava entre suas melhores amigas (Lewis tinha várias amigas mulheres, também, coisa que para um intelectual daquela época era bastante incomum). De fato ambos tinham muito em comum, coisa que Lewis sintetiza em sua autobiografia como o esforço pela quebra de preconceitos.
A amizade com J.R.R. Tolkien ficou marcada pela quebra de dois velhos preconceitos. Nas palavras do próprio Lewis: "Assim que eu ingressei no mundo acadêmico recomendaram-me (implicitamente) para nunca confiar em um papista; e quando ingressei novamente na Faculdade de Língua Inglesa recomendaram-me (explicitamente) para jamais confiar nos filólogos, e Tolkien se enquadrava em ambas as categorias." [1] Podemos dizer ainda que os maiores preconceitos que ambos foram felizes em quebrar são contra a imaginação e contra a articulação de fé e razão (antiqüíssimo problema da humanidade). Na verdade eles se empenhavam pela articulação de tudo isto: devoção cristã, sensibilidade artística e competência acadêmica.
Tanto Tolkien quanto Lewis defendiam que o profissional, seja das letras, seja da educação ou qualquer outra ciência humana, deve se valer de várias áreas do conhecimento na sua busca pela verdade, não usando apenas a via da razão, mas também usando um importante mediador: a imaginação. Com isto, eles se colocavam contra o pensamento predominante da época, pautada pelo racionalismo e iluminismo acadêmico. É preciso considerar ainda a rivalidade que pode haver entre um campo prático como a crítica literária, representada por Lewis, e a filologia, considerada mais analítica. Assim, ao invés de separá-los, as especialidades dos dois intelectuais se uniram em uma importante complementação e no incentivo à efetiva interdisciplinaridade, até beirando a transdisciplinaridade.
Assim eles faziam diferença, ficando conhecidos como "os cristãos de Oxford". Na verdade, eles faziam críticas aos chamados cientistas cristãos, que seguiam os passos dos não cristãos em termos de racionalismo e positivismo. Com relação à questão do mal e do sofrimento, por exemplo, Lewis os considerava, de uma maneira geral, demasiadamente simplistas, quando tentavam explicá-los como meras ilusões. Se assim fosse, dizia Lewis, tal ilusão é que seria uma monstruosidade e o que é pior, permitida por Deus. [2] Certamente os males não aparecem desta forma na obra de nenhum dos dois autores. O sofrimento também se destaca como algo realmente existente e, de fato, assustador para alguns, embora, por outro lado não tenha substância. No fundo o sofrimento, que é até mais natural ao cristão do que ao não-cristão, que pode fazer um estrago para se defender dele, é um grande mistério que exige fé antes de tudo.
Outra crítica que ambos faziam aos cristãos na academia era a suposição de que o mal poderia ter sido criado por Satanás, ou que ele fosse capaz de inventar alguma coisa boa. Tudo o que ele sabe fazer é imitar, e imitar mal. Com estes conceitos fortes e bíblicos, todos os críticos concordam que O Senhor dos Anéis jamais poderia ser considerada alguma historinha para ninar sobre um mundo cor de rosa. O mesmo, diríamos, vale para as Crônicas de Nárnia. O mal existe mesmo e é feio, sua desvantagem é que só o que ele sabe fazer é corromper e distorcer o que já existe. Neste sentido ele pode ser comparado mais a uma doença e não a algum estado permanente ou normal. Esta ênfase antimaniqueísta é fundamental para entendermos ambos os autores e suas obras.
Além da preocupação com a relação entre ciência e cristianismo e a questão do bem e do mal, que aprofundarei mais adiante, o que unia os amigos era o seu empenho em serem bons escritores e bons críticos, até mesmo do cristianismo. Para além do interesse acadêmico, eles mostravam também um forte interesse artístico comum, particularmente pela literatura. Mas o que coroava mesmo a sua amizade é o fator teológico. No caso de Tolkien, a sua contribuição literária e do campo da filologia foi mais reconhecida do que a teológica e acadêmica. Entretanto, suas cartas e depoimentos dos Inklings revelam a importância de suas convicções religiosas.
Apesar do clima de disputa reinante na Oxford dos tempos de Tolkien e Lewis, e de ambos terem sido até certo ponto vítimas de ciúmes e preconceitos pelo sucesso de suas obras de ficção e pela coragem com que se referiam a temas religiosos, eles não se deixavam intimidar facilmente. De acordo com Carpenter, [3] Tolkien não escapou de revelar certa inveja da obra de Lewis e ciúme de certas amizades com autores de que ele não gostava muito. E a sua esposa, Edith, freqüentemente manifestava ciúmes em relação ao próprio Lewis, que sempre teve uma personalidade cativante. Entretanto foi a amizade entre os dois que inspirou grande parte do livro, dedicado por Lewis ao tema amor, Os Quatro Amores [4] particularmente no que tange à amizade.
Sua postura cristã é que permitia que ambos os autores resolvessem suas diferenças de maneira tranqüila, até mesmo as religiosas. Como se sabe, Tolkien manifestava certo ressentimento contra a igreja anglicana, a igreja da Inglaterra, por ter-se desviado do lar original do cristianismo, enquanto Lewis insistia que, ao se converter, sentia-se chamado a voltar ao seu lar original, a Igreja da Inglaterra. [5]
Para além destas pequenas diferenças, porém Tolkien e Lewis procuravam complementar-se tanto nos seus esforços acadêmicos e debates teológicos. Enquanto Lewis escrevia histórias paralelamente aos seus livros teológicos, Tolkien empenhava-se por criar uma mitologia para a Inglaterra com fundo inevitavelmente cristão. Enquanto Lewis denunciava o que ele chamava de "o processo lingüístico inconsciente da degradação contínua de boas palavras e embotamento de distinções úteis" [6] Tolkien criava as suas próprias palavras e línguas.
Em Studies in Words, Lewis prova que tinha consciência de que nenhuma palavra humana é eterna. Como tudo o que é temporal, a linguagem humana tende ao caos e à dispersão do seu sentido. Pode-se dizer assim, que as línguas inventadas por Tolkien tinham esta função de resgate dos sentidos perdidos da nossa própria linguagem. Estas preocupações em comum é que permitiam o diálogo entre os dois pensadores, que visivelmente desenvolveram um profundo respeito um pelo outro, inclusive por seu campo acadêmico, como se vê nestas palavras de Lewis:
Mas o maior sinal de respeito de Lewis em relação ao amigo e sua especialidade é o herói de sua trilogia espacial, Longe do Planeta Silencioso, Perelandra e Esta Força Medonha, o filólogo de Cambridge, Randsom, foi criado à imagem do próprio Tolkien, numa clara homenagem ao amigo. Tolkien por sua vez, também faz homenagens a Lewis, neste comentário por exemplo:
E não se tratava de nenhuma admiração idealista ou acrítica. Apesar do respeito que Lewis tinha pelos filólogos ele também reconhecia seus limites, como se vê neste comentário:
A propósito, esta incerteza não se encontra somente na ciência, mas até nos jornais, como tão bem notaram filósofos famosos como os integrantes da Escola de Frankfurt, inventora da teoria crítica e uma das criadoras da teoria da chamada indústria cultural, ou Foucault ou Maffesoli, que se interessaram pelo mesmo tema. Para Tolkien a verdade usualmente se encontra nos livros e não nos jornais. [10] Tanto Tolkien quanto Lewis faziam severas críticas às manifestações do totalitarismo da tecnologia, que ao invés de suscitar reflexão filosófica como à semelhança da leitura, banaliza a realidade e embrutece as pessoas. Assim a filosofia é remetida aos filósofos e representante das ciências humanas, entendidas como as únicas a terem a competência e o direito de filosofar. E uma das melhores formas de manifestação desta crítica está em O Senhor dos Anéis como bem coloca Chance:
À semelhança de Foucault, Tolkien, da mesma forma que o seu companheiro dos Inklings, Lewis, questionava a validade de se eleger as ciências humanas como representante da razão da sua geração. Tolkien manifestava esta crítica pela via da ficção através de instituições como Sauron e seus seguidores associados ao território da morte, Mordor, que ele governava de maneira tão tirana. Todos os três pensadores levantam objeções contra o espírito combativo das tecnologias aplicadas ao governo das nações do mundo pós-iluminista. [11]
Como tantos outros acadêmicos e escritores, (Júlio Verne, Monteiro Lobato, Cervantes, Huxley, Guimarães Rosa, Orwell) Tolkien e Lewis descobriram que a via da imaginação e da ficção é a melhor para se dizer o que tem que ser dito, fazendo a crítica do seu tempo e contribuindo, assim, para a transformação da história.
Tolkien e Lewis também mantinham o saudável hábito de fazer a crítica às suas respectivas obras de ficção, em particular ou na roda de amigos, os mencionados Inklings. De acordo com Lewis, eles costumavam reunir-se para discutir literatura, mas acabavam fazendo algo bem melhor, [12] isto é, teologia. Lewis mostrava-se crítico até em relação à reação do amigo às críticas em geral. Diz ele que Tolkien tinha duas reações a elas: "ou ele começa tudo de novo desde o começo, ou não liga a mínima." [13] Evidentemente então a amizade não era sem atritos, mas qual amizade verdadeira e sincera poderia ser?
O que interessa é destacar que a amizade entre Lewis e Tolkien contribuiu muito para lançar pontes importantes para o diálogo, não somente entre os campos da lingüística e da literatura, mas também entre estes campos e outras áreas das ciências humanas tais como a filosofia, a história, a educação e até a teologia.
No mencionado ensaio sobre O Senhor dos Anéis, Lewis arrola algumas razões, porque considera a obra indispensável, notando, em primeiro lugar, que não se trata de uma continuação do Hobbit. Pelo contrário, o Hobbit é que é uma tentativa de adaptação de O Senhor dos Anéis para crianças. A intenção de O Hobbit era de apresentar o jeito de ser e viver doméstico, quase vulgar e anárquico, de boa índole, apesar da aparência não muito atraente, destes seres peculiares, que, segundo Lewis, só um inglês seria capaz de criar. Já em O Senhor dos Anéis, a ênfase está no contraste entre os hobbits e o seu destino. Sua existência depende de poderes insuspeitos e surpreendentes. O mais irônico de tudo é que o herói principal deste drama épico é um hobbit, o mais frágil de todos os seres. Daí que Lewis também chamasse O Senhor dos Anéis de romance heróico, o que não representou para ele um retrocesso, como para certos críticos, e sim, um avanço. Trata-se de um exemplar único da capacidade de sub-criação de Tolkien, pela qual ele recria o mundo todo. O livro é assim reservado a leitores predestinados. Na verdade, conclui Lewis, O Senhor dos Anéis é um mito que não serve como meio de escape da realidade, como julgam alguns, mas como pura e saudável invencionice e consciente das ilusões da vida ordinária.
O elemento de nostalgia e angústia presente na obra, pode não ter efeito muito relaxante para o leitor, e diríamos que isto se aplica ainda mais ao filme, mas ele pode (esta é precisamente sua intenção) ser revigorador, trazendo-lhe novas esperanças em meio às suas próprias angústias. Assim, a arte mitopoética de Tolkien põe em jogo emoções, leveza, virtudes e horizontes distantes, procurando retratar o caráter paradoxal da vida humana que está neste vão intermediário entre a ilusão e o estar desiludido.
Naquele ensaio, Lewis contesta ainda as acusações de dualismo na obra, pois todos os personagens apresentam bons e maus aspectos misturados entre si. Não há pessoas, nem realidades pretas ou brancas. O melhor exemplo dessa mistura é Gollum. Contra a acusação de dualismo pesa ainda o fato de as coisas não acontecerem de forma aleatória. Não há relativismo, pois a ênfase está na providência divina que conduz tudo nos bastidores, mesmo que nem sempre de maneira visível. Lewis diz que Tolkien consegue tornar visíveis as almas invisíveis, trazendo para fora o que está dentro do coração. Desta forma, ele defende consistentemente a idéia de que a vida humana tem, de fato, este elemento heróico e mitológico, que só pode ser captado e devidamente degustado pelos que têm a simplicidade de uma criança no coração.
Em resumo: a amizade e diálogo mantidos entre Tolkien e Lewis provam que a interdisciplinaridade, esta palavra da moda nos meios educacionais, acontece antes de tudo entre pessoas que se relacionam em um nível de profundidade. O diálogo entre eles abriu oportunidades concretas para o combate a diversos preconceitos e articulação de campos fragmentários do conhecimento na modernidade. Antes de nos atermos a estas polêmicas, entretanto, é importante atentarmos para a obra em si.
Notas da autora
Tolkien e Lewis: quem copiou de quem ?
Escrito por Terra Magazine | 28 Julho 2008
Toda a amizade e influência mútua de Tolkien e Lewis foi motivo de livro, Tolkien e C.S. Lewis - O Dom da Amizade, traduzido por Ronald Kyrmse, que sugiro a leitura para esclarecer qualquer dúvida sobre esse assunto. Seria inevitável que elementos similares transitassem entre as obras, o que não diminui a qualidade e a profundidade das histórias, como foi mencionado em seus comentários de qualquer um deles. Ambos discutiam muito toda essa influência e, pelo ponto de vista literário, foram além de beber da mesma fonte, ambos analisavam as mesmas referências e trocavam sugestões sobre o que utilizar e como utilizar em seus livros.
C.S. Lewis, em foto de 1946
Não é segredo para ninguém que isso aconteceu. Aliás, é chover no molhado dizer que Tolkien foi quem mais estudou mitologia nórdica no último século e fez algo de útil com esse estudo. Mas os diretores de Principe Caspian não estudaram tudo isso, o que transforma as menções a esses elementos em algo um tanto grosseiro e inevitavelmente inspirado em outras obras. Quem copiou de quem mesmo?
Peter Jackson fez um ótimo trabalho na seqüência do Val do Bruinen, por exemplo, ao inserir levemente o formato de cavalos para o turbilhão que manda os Nazgûl passearem. Agora esse deus da água de Nárnia, que não conseguiu nem superar o Ulmo da capa do Contos Inacabados em termos visuais, por exemplo, parece tolo e a cena tem um timming ruim. Tudo bem que Lewis preferiu trabalhar com a personificação dos elementos da natureza, enquanto Tolkien foi mais sutil e permitiu que apenas algumas “forças” da Terra-média tivessem forma.
Todos os animais da essência de Nárnia são inteligentes, se comunicam e integarem com outras raças. Tolkien permitiu que só os Elfos conseguissem se comunicar com outras espécies. E isso leva a outro elemento que os inspirou: as árvores. Seria o fato de os Ents existirem e as árvores darem o ar da graça em Nárnia mera coincidência? Não, pelo contrário, foi influência mútua descarada. Outra coincidência foi o fato de, em ambas as obras, a carga das árvores, ou seja, o warcry da natureza acontecer exatamente no final dos “segundos” livros? Nesse caso, coincidência não existe, e insistir nela é pura bobagem.
Fico pensando quem copiou de quem? O fato é: Tolkien e Lewis cozinharam a mesma sopa, porem cada um fez o que bem entendeu com o seu quinhão. Mas com tanta mediocridade assim, quem copiou de quem mesmo? A resposta é que ambos copiaram um pouco, se inspirando mútuamente. É provável que Lewis tenha copiado um pouco mais de Tolkien, do que Tolkien de Lewis, mas e daí? Eram grandes amigos, e se Tolkien sentiu-se ofendido teve a grandiosidade de ficar calado, em nome da amizade.
Na verdade ambos além de copiarem (ou se inspirarem) uns nos outros, também pegaram as raízes dos seus contos das antigas lendas européias. Essas lendas por sua vez foram passadas de boca-em-boca por séculos, e só deus sabe de onde vieram antes disso... será que vale mesmo a pena pensar sobre quem copiou de quem?
Gabriele Greggersen
Falar de uma amizade como a de Tolkien e Lewis hoje, exige um artigo à parte. Primeiro, porque não se sabe mais muito bem o que vem a ser isto e segundo, pelos bons frutos que este diálogo trouxe para o legado cultural da humanidade e particularmente para o mundo cristão. Como dizíamos em um livro sobre a ética de O Senhor dos Anéis: Da Fantasia à Ética – (Editora Ultimato), muitos leitores ignoram que o que os uniu foi sua fé cristã, bem como da contribuição de ambos para a cultura em geral e particularmente, para a filologia (no caso de Tolkien) e para a literatura (no caso de Lewis). Enquanto C.S. Lewis é mais conhecido no meio cristão, tanto protestante, quanto católico, a profunda fé de Tolkien não é muito levada em conta por muitos dos seus fãs e fã-clubes, que o veneram somente pelas riqueza das suas fantasias, línguas e mundos que criou. Na verdade, temos fortes razões para acreditar que Lewis foi o melhor amigo de Tolkien em Oxford, embora a amizade de Lewis tivesse se dividido por algum tempo entre Tolkien e outro autor, Charles Williams, por quem Tolkien não tinha tanto apreço, e com a sua esposa, Joy, com quem se casou já na proximidade dos sessenta anos de idade e que certamente também contava entre suas melhores amigas (Lewis tinha várias amigas mulheres, também, coisa que para um intelectual daquela época era bastante incomum). De fato ambos tinham muito em comum, fato que Lewis sintetiza em sua autobiografia como o esforço pela “quebra de preconceitos”, particularmente entre os cristãos, para quem eles caem particularmente mau:
Podemos dizer ainda que os maiores preconceitos que ambos foram felizes em quebrar são contra a imaginação e contra a articulação de fé e razão (antiquíssimo problema da humanidade). Na verdade eles se empenhavam pela articulação de tudo isto: devoção cristã, sensibilidade artística e competência acadêmica.
A amizade com J.R.R. Tolkien… ficou marcada pela quebra de dois velhos preconceitos. Assim que eu ingressei neste mundo (o de Oxford) recomendaram-me (implicitamente) nunca confiar em um papista e quando ingressei novamente na Faculdade de Língua Inglesa recomendaram-me (explicitamente) jamais confiar nos filólogos. E Tolkien se enquadrava em ambas as coisas.[1]
Tanto Tolkien quanto Lewis defendiam que o profissional, seja das letras, seja da educação ou outra “ciência humana” deve se valer de várias áreas do conhecimento na sua busca pela verdade, não apenas pela via da razão, mas também usando um importante mediador: a imaginação. Com isto, eles se colocavam contra o pensamento predominante na sua época, pautada pelo racionalismo e iluminismo acadêmico. É preciso considerar ainda a rivalidade que pode haver entre um campo “prático” como a crítica literária, representada por Lewis, e a filologia, considerada mais analítica. Assim, ao invés de separa-los, a especialidade dos dois intelectuais redundou em uma importante complementação e no incentivo à efetiva interdisciplinaridade, beirando a transdisciplinaridade.
Assim eles faziam diferença, ficando conhecidos como os “cristãos de Oxford”. Na verdade, eles faziam críticas aos chamados “cientistas cristãos”, que seguiam os passos dos não cristão em termos de racionalismo e positivismo. Com relação à questão do mal e do sofrimento, por exemplo, Lewis os considerava , de uma maneira geral, demasiadamente simplistas, quando tentavam explica-los como meras “ilusões”. Se assim fosse, diz Lewis tal ilusão é que seria uma “monstruosidade” e o que é pior, “permitida por Deus.”[2]
Certamente os males não aparecem desta forma na obra de nenhum dos dois autores. O sofrimento também se destaca como algo realmente existente e, de fato, assustador para alguns, embora, por outro lado, ele não tenha substância. No fundo o sofrimento, que é até mais natural ao cristão, do que ao não-cristão, que pode fazer um estrago para se defender dele, é um grande mistério, que exige fé antes de tudo.
Outra crítica que ambos faziam aos cristãos na academia era a suposição de que o mal poderia ter sido “criado” por Satanás, ou que ele fosse capaz de “inventar” alguma coisa boa. Tudo o que ele sabe fazer é imitar e imitar mal. Com estes conceitos fortes e bíblicos, todos os críticos concordam que SenA, jamais poderia ser considerada alguma “historinha para ninar” sobre um mundo “cor de rosa”. O mesmo, diríamos, vale para as Crônicas de Nárnia. O mal existe mesmo e é feio. E sua desvantagem é que só o que ele sabe fazer é corromper e distorcer o que já existe. Neste sentido ele pode ser comparado mais a uma doença e não, do que a algum estado permanente ou “normal.” Esta ênfase antimaniqueísta é fundamental para entendermos ambos os autores e suas obras.
Além da preocupação com a relação entre ciência e cristianismo e a questão do bem e do mal, que aprofundaremos mais adiante, o que unia os amigos era o seu empenho em serem bons escritores e bons críticos, até mesmo do cristianismo. Para além do interesse acadêmico, eles mostravam também um forte interesse artístico comum, particularmente pela literatura. Mas o que coroava mesmo a sua amizade é o teológico. No caso de Tolkien, a contribuição literária e do campo da filologia fosse mais reconhecida do que a teológica e acadêmica. Entretanto, suas cartas e depoimentos dos Inklings revelam a importância de suas convicções religiosas.
Apesar do clima de disputa reinante na Oxford dos tempos de Tolkien e Lewis e de ambos terem sido até certo ponto vítimas de ciúmes e preconceitos pelo sucesso de suas obras de ficção e pela coragem com que se referiam a temas religiosos, eles não se deixavam intimidar facilmente. De acordo com Carpenter[3], Tolkien mesmo não escapou de revelar certa “inveja” da obra de Lewis e ciúme de certas amizades com autores de que ele não gostava muito. E a sua esposa, Edith, freqüentemente manifestava ciúmes em relação ao próprio Lewis, que sempre teve uma personalidade cativante. Entretanto, foi certamente a amizade entre os dois que inspirou grande parte do livro, dedicado por Lewis ao tema amor, Os Quatro Amores [4], particularmente no que tange à amizade.
Sua postura cristã é que permitia que ambos autores resolvessem suas diferenças de maneira tranquila, até mesmo as religiosas. Como se sabe, Tolkien manifestava certo ressentimento contra a igreja anglicana, a igreja da Inglaterra, por ter-se desviado do lar original do cristianismo, enquanto Lewis insistia que, ao se converter, sentia-se chamado a “voltar” ao seu lar original, a Igreja da Inglaterra.[5]
Para além destas pequenas diferenças, porém Tolkien e Lewis procuravam complementar-se tanto nos seus esforços acadêmicos e debates teológicos. Enquanto Lewis escrevia histórias paralelamente aos seus livros teológicos, Tolkien empenhava-se por criar uma mitologia para a Inglaterra com fundo inevitavelmente cristão. Enquanto Lewis denunciava o que ele chamava de “o processo linguístico inconsciente da degradação contínua de boas palavras e embotamento de distinções úteis”.[6], Tolkien criava as suas próprias palavras e línguas.
Em Studies in Words, Lewis prova que tinha consciência de que nenhuma palavra humana é eterna. Como tudo o que é temporal, a linguagem humana tende ao caos e à dispersão do seu sentido. Pode-se dizer assim, que as línguas inventadas por Tolkien tinham esta função de resgate dos sentidos perdidos da nossa própria linguagem. Estas preocupações em comum é que permitiam o diálogo entre os dois pensadores, que visivelmente desenvolveram um profundo respeito um pelo outro, inclusive por seu campo acadêmico, como se vê nestas palavras de Lewis:
Ouvi dizer que existe gente que gostaria mais que o estudo da literatura fosse completamente livrado da filologia; isto é, do amor e conhecimento das palavras. É provável que nem exista gente assim. Mas, se existir então, só podem ser lunáticos, ou candidatos ao tratamento de… alguma desilusão obstinada e fechada a sete chaves.[7]
Mas o maior sinal de respeito de Lewis em relação ao amigo e sua especialidade é o herói de seu trilogia espacial, Longe do Planeta Silencioso, Perelandra e Esta Força Medonha, o filólogo de Cambridge Randsom, numa clara homenagem ao amigo.
Tolkien por sua vez, também faz homenagens ao amigo, neste comentário por exemplo: “A amizade com Lewis é compensatória em muitos aspectos: além do prazer constante, o contato com um homem ao mesmo tempo honesto, corajoso, intelectual – um acadêmico, um poeta e um filósofo – e, depois de sua longa peregrinação, finalmente um amante do nosso Senhor – fez-me um enorme bem.”[8] E não se tratava de nenhuma admiração idealista ou acrítica. Apesar do respeito que Lewis tinha pelos filólogos, ele também reconhecia os seus limites, como se vê nesta comentário:
A propósito, esta incerteza não se encontra somente na ciência, mas até nos jornais, como tão bem notaram filósofos famosos como os integrantes da Escola de Frankfurt, inventora da “teoria crítica” e uma das criadoras da teoria da chamada “indústria cultural” ou Foucault ou Maffesoli, que se interessaram pelo mesmo tema. Para Tolkien a verdade usualmente se encontra nos livros e não, nos jornais.[10] Tanto Tolkien, quanto Lewis faziam severas críticas às manifestações do totalitarismo da tecnologia, que ao invés de suscitar reflexão filosófica como à semelhança da leitura, banaliza a realidade e embrutece as pessoas. Assim a filosofia é remetida aos filósofos e representante das “ciências humanas”, entendidas como as únicas a terem a competência e o direito de filosofar. E uma das melhores formas de manifestação desta crítica está em SenA como bem coloca Chance:
O sonho do filólogo é de mapear todos os sentidos de uma palavra, gerando uma árvore semântica perfeita; cada ramo remetendo a um galho, cada galho, a um tronco. Isto m detrimento do fato de que seja algo que raramente possa ser feito com perfeição; afinal toda pesquisa redunda na incerteza.[9]
À semelhança de Foucault, Tolkien, da mesma forma que o seu companheiro dos Inklings, C.S. Lewis, questionava a validade de se eleger as ciências humanas como representante da razão da sua geração…. Tolkien manifestava esta crítica pela via da ficção através de instituições como Sauron, o Senhor do Escuro, e os seus seguidores associados ao território da morte, Mordor, que ele governava de maneira tão tirana. Todos os três pensadores levantam objeções contra o espírito combativo das tecnologias aplicadas ao governo das nações do mundo pós-iluminista.[11]
Como tantos outros acadêmicos e escritores, (Júlio Verne, Monteiro Lobato, Cervantes, Huxley, Guimarães Rosa, Orwell) Tolkien e Lewis descobriram que a via da imaginação e da ficção é a melhor para se dizer o que tem que ser dito, fazendo a crítica do seu tempo e contribuindo, assim, para a transformação da história.
Tolkien e Lewis também mantinham o saudável hábito de fazer a crítica às suas respectivas obras de ficção, em particular ou na roda de amigos, os mencionados Inklings. De acordo com Lewis, eles costumavam reunir-se para discutir literatura, mas acabavam fazendo algo “bem melhor”[12], isto é, teologia. Lewis mostrava-se crítico até em relação à reação do amigo às críticas em geral. Diz ele que Tolkien tinha duas reações a elas “ ou ele começa tudo de novo desde o começo, ou ele não liga a mínima.”[13] Evidentemente então a amizade não era sem atritos, mas qual amizade verdadeira e sincera poderia ser?
O que interessa para os nossos efeitos aqui é destacar que a amizade entre Lewis e Tolkien contribuiu muito para lançar pontes importantes para o diálogo, não somente entre os campos da linguística e da literatura, mas também entre estes campos e outras áreas das ciências humanas tais como a filosofia, a história, a educação e até a teologia.
No mencionado ensaio sobre SenA, Lewis arrola algumas razões, porque considera a obra “indispensável”, notando, em primeiro lugar, que não se trata de uma continuação de o Hobbit. Pelo contrário, o Hobbit é que é uma tentativa de adaptação de SenA para crianças. A intenção de O Hobbit era de apresentar o jeito de ser e viver “doméstico”, quase vulgar e anárquico, de boa índole, apesar da aparência não muito atraente, destes seres peculiares, que, segundo Lewis, só um inglês seria capaz de criar. Já em SenA, a ênfase está no contraste entre os hobbits e o seu destino. Sua existência depende de poderes insuspeitos e surpreendentes. O mais irônico de tudo é que o herói principal deste drama épico é hobbit, o mais frágil de todos os seres. Daí que Lewis também chamasse SenA de “romance heróico”, o que não representou para ele um retrocesso, como para certos críticos, e sim, um avanço. Trata-se de um exemplar único da capacidade de sub-criação de Tolkien, pela qual ele recria o mundo todo. O livro é assim reservado a leitores “predestinados”. Na verdade, conclui Lewis, SenA é um mito, que não serve como meio de escape da realidade, como julgam alguns, mas como pura e saudável “invencionice” e consciente das ilusões da vida ordinária.
O elemento de nostalgia e angústia presente na obra, pode não ter efeito muito relaxante para o leitor, e diríamos que isto se aplica ainda mais ao filme, mas ele pode (esta é precisamente sua intenção), sim, ser revigorador, trazendo-lhe novas esperanças em meio às suas próprias angústias. Assim, a arte “mitopoeica” de Tolkien põe em jogo emoções, leveza, virtudes e horizontes distantes, procurando retratar o caráter paradoxal da vida humano situada que está neste vão intermediário entre a ilusão e o estar desiludido.
Naquele ensaio, Lewis contesta ainda as acusações de dualismo na obra, como veremos mais detalhadamente a seguir, pois todos os personagens apresentam bons e maus aspectos misturados entre si. Não há pessoas, nem realidades “pretas” ou “brancas”. O melhor exemplo dessa mistura é Gollum. Contra a acusação de dualismo pesa ainda o fato de as coisas não acontecerem de forma aleatória, e nem tão pouco previsível em SenA. Não há relativismo, pois a ênfase está na providência divina que conduz tudo nos bastidores, mesmo que nem sempre de maneira visível. Lewis diz que Tolkien consegue tornar visíveis as almas invisíveis, trazendo para fora o que está dentro do coração. Desta forma, ele defende consistentemente a ideia de que a vida humana tem, de fato, este elemento heróico e mitológico, que só pode ser captado e devidamente “degustado” pelos que têm a simplicidade de uma criança no coração, como veremos a seguir.
NOTAS
[1] Duriez, The Lewis Handbook, Grand Rapids (MI); Baker Book, 1990, 214.
[2] Lewis, Letters, Nova Iorque: Harvest, 1993, 440 (Carta de 1954).
[3] Cf. Carpenter, J.R.R. Tolkien: a Biography, London: Haper Collins, 2002, 198 e 202.
[4] Lewis, Os Quatro Amores, 2a. ed., São Paulo: Mundo Cristão, 1986.
[5] Cf. Carpenter; 2002, 202 ss. Veja também Lewis, The Pilgrim´s Regress, Grand Rapids (MI): 1958.
[6] Lewis, God In The Dock, Grand Rapids (MI), Eerdmans, 1970, 333.
[7] Lewis, Studies In Words. Cambridge: Cambridge University Press, 1960, 3.
[8] Carpenter, 2002, 198-9.
[9] Lewis, C.S. Studies In Words. Cambridge: Cambridge University Press, 1960, 9.
[10] Carpenter, 2002, 158.
[11] Chance, Lord of the Rings, Kentucky: The University Press of Kentucky, 2001, 20-21.
[12] Lewis, Letters, 1993, 363 (Carta de 1941).
[13] Idem, 481 (Carta de 1959).
Abreviações SenA – O Senhor dos Anéis
O dom da amizade de Tolkien e Lewis
Escrito por Gabriele Greggersen | 12 Janeiro 2009
Falar de uma amizade como a de J.R.R. Tolkien e Lewis exige um artigo à parte. Primeiro porque, em nosso tempo, não se sabe mais muito bem o que vem a ser este tipo de amizade; e segundo, pelos bons frutos que este diálogo trouxe para o legado cultural da humanidade e do mundo cristão.
Segundo meu livro sobre a ética de O Senhor dos Anéis, chamado Da Fantasia à Ética, muitos leitores ignoram que o fator de união para ambos os autores foi sua fé cristã, bem como a contribuição de ambos para a cultura em geral e particularmente, para a filologia (no caso de Tolkien) e para a literatura (no caso de Lewis). Mas enquanto C.S. Lewis é mais conhecido no meio cristão, tanto protestante quanto católico, a profunda fé de Tolkien não é levada muito em conta por seus fãs. Tolkien é venerado somente pelas riqueza das suas fantasias, línguas e mundos que criou, e não pela sua religiosidade ou legado religioso.
Na verdade temos fortes razões para acreditar que Lewis foi o melhor amigo de Tolkien em Oxford, embora a amizade de Lewis tivesse se dividido por algum tempo entre Tolkien e outro autor, Charles Williams, por quem Tolkien não tinha tanto apreço, e com a sua esposa, Joy, com quem se casou já na proximidade dos sessenta anos de idade e que certamente também contava entre suas melhores amigas (Lewis tinha várias amigas mulheres, também, coisa que para um intelectual daquela época era bastante incomum). De fato ambos tinham muito em comum, coisa que Lewis sintetiza em sua autobiografia como o esforço pela quebra de preconceitos.
A amizade com J.R.R. Tolkien ficou marcada pela quebra de dois velhos preconceitos. Nas palavras do próprio Lewis: "Assim que eu ingressei no mundo acadêmico recomendaram-me (implicitamente) para nunca confiar em um papista; e quando ingressei novamente na Faculdade de Língua Inglesa recomendaram-me (explicitamente) para jamais confiar nos filólogos, e Tolkien se enquadrava em ambas as categorias." [1] Podemos dizer ainda que os maiores preconceitos que ambos foram felizes em quebrar são contra a imaginação e contra a articulação de fé e razão (antiqüíssimo problema da humanidade). Na verdade eles se empenhavam pela articulação de tudo isto: devoção cristã, sensibilidade artística e competência acadêmica.
Tanto Tolkien quanto Lewis defendiam que o profissional, seja das letras, seja da educação ou qualquer outra ciência humana, deve se valer de várias áreas do conhecimento na sua busca pela verdade, não usando apenas a via da razão, mas também usando um importante mediador: a imaginação. Com isto, eles se colocavam contra o pensamento predominante da época, pautada pelo racionalismo e iluminismo acadêmico. É preciso considerar ainda a rivalidade que pode haver entre um campo prático como a crítica literária, representada por Lewis, e a filologia, considerada mais analítica. Assim, ao invés de separá-los, as especialidades dos dois intelectuais se uniram em uma importante complementação e no incentivo à efetiva interdisciplinaridade, até beirando a transdisciplinaridade.
Assim eles faziam diferença, ficando conhecidos como "os cristãos de Oxford". Na verdade, eles faziam críticas aos chamados cientistas cristãos, que seguiam os passos dos não cristãos em termos de racionalismo e positivismo. Com relação à questão do mal e do sofrimento, por exemplo, Lewis os considerava, de uma maneira geral, demasiadamente simplistas, quando tentavam explicá-los como meras ilusões. Se assim fosse, dizia Lewis, tal ilusão é que seria uma monstruosidade e o que é pior, permitida por Deus. [2] Certamente os males não aparecem desta forma na obra de nenhum dos dois autores. O sofrimento também se destaca como algo realmente existente e, de fato, assustador para alguns, embora, por outro lado não tenha substância. No fundo o sofrimento, que é até mais natural ao cristão do que ao não-cristão, que pode fazer um estrago para se defender dele, é um grande mistério que exige fé antes de tudo.
Outra crítica que ambos faziam aos cristãos na academia era a suposição de que o mal poderia ter sido criado por Satanás, ou que ele fosse capaz de inventar alguma coisa boa. Tudo o que ele sabe fazer é imitar, e imitar mal. Com estes conceitos fortes e bíblicos, todos os críticos concordam que O Senhor dos Anéis jamais poderia ser considerada alguma historinha para ninar sobre um mundo cor de rosa. O mesmo, diríamos, vale para as Crônicas de Nárnia. O mal existe mesmo e é feio, sua desvantagem é que só o que ele sabe fazer é corromper e distorcer o que já existe. Neste sentido ele pode ser comparado mais a uma doença e não a algum estado permanente ou normal. Esta ênfase antimaniqueísta é fundamental para entendermos ambos os autores e suas obras.
Além da preocupação com a relação entre ciência e cristianismo e a questão do bem e do mal, que aprofundarei mais adiante, o que unia os amigos era o seu empenho em serem bons escritores e bons críticos, até mesmo do cristianismo. Para além do interesse acadêmico, eles mostravam também um forte interesse artístico comum, particularmente pela literatura. Mas o que coroava mesmo a sua amizade é o fator teológico. No caso de Tolkien, a sua contribuição literária e do campo da filologia foi mais reconhecida do que a teológica e acadêmica. Entretanto, suas cartas e depoimentos dos Inklings revelam a importância de suas convicções religiosas.
Apesar do clima de disputa reinante na Oxford dos tempos de Tolkien e Lewis, e de ambos terem sido até certo ponto vítimas de ciúmes e preconceitos pelo sucesso de suas obras de ficção e pela coragem com que se referiam a temas religiosos, eles não se deixavam intimidar facilmente. De acordo com Carpenter, [3] Tolkien não escapou de revelar certa inveja da obra de Lewis e ciúme de certas amizades com autores de que ele não gostava muito. E a sua esposa, Edith, freqüentemente manifestava ciúmes em relação ao próprio Lewis, que sempre teve uma personalidade cativante. Entretanto foi a amizade entre os dois que inspirou grande parte do livro, dedicado por Lewis ao tema amor, Os Quatro Amores [4] particularmente no que tange à amizade.
Sua postura cristã é que permitia que ambos os autores resolvessem suas diferenças de maneira tranqüila, até mesmo as religiosas. Como se sabe, Tolkien manifestava certo ressentimento contra a igreja anglicana, a igreja da Inglaterra, por ter-se desviado do lar original do cristianismo, enquanto Lewis insistia que, ao se converter, sentia-se chamado a voltar ao seu lar original, a Igreja da Inglaterra. [5]
Para além destas pequenas diferenças, porém Tolkien e Lewis procuravam complementar-se tanto nos seus esforços acadêmicos e debates teológicos. Enquanto Lewis escrevia histórias paralelamente aos seus livros teológicos, Tolkien empenhava-se por criar uma mitologia para a Inglaterra com fundo inevitavelmente cristão. Enquanto Lewis denunciava o que ele chamava de "o processo lingüístico inconsciente da degradação contínua de boas palavras e embotamento de distinções úteis" [6] Tolkien criava as suas próprias palavras e línguas.
Em Studies in Words, Lewis prova que tinha consciência de que nenhuma palavra humana é eterna. Como tudo o que é temporal, a linguagem humana tende ao caos e à dispersão do seu sentido. Pode-se dizer assim, que as línguas inventadas por Tolkien tinham esta função de resgate dos sentidos perdidos da nossa própria linguagem. Estas preocupações em comum é que permitiam o diálogo entre os dois pensadores, que visivelmente desenvolveram um profundo respeito um pelo outro, inclusive por seu campo acadêmico, como se vê nestas palavras de Lewis:
Ouvi dizer que existe gente que gostaria que o estudo da literatura fosse completamente livrado da filologia; isto é, do amor e conhecimento das palavras. É provável que nem exista gente assim. Mas, se existir, só podem ser lunáticos, ou candidatos ao tratamento de alguma desilusão obstinada e fechada a sete chaves. [7]
Mas o maior sinal de respeito de Lewis em relação ao amigo e sua especialidade é o herói de sua trilogia espacial, Longe do Planeta Silencioso, Perelandra e Esta Força Medonha, o filólogo de Cambridge, Randsom, foi criado à imagem do próprio Tolkien, numa clara homenagem ao amigo. Tolkien por sua vez, também faz homenagens a Lewis, neste comentário por exemplo:
"A amizade com Lewis é compensatória em muitos aspectos: além do prazer constante, o contato com um homem ao mesmo tempo honesto, corajoso, intelectual - um acadêmico, um poeta e um filósofo - e, depois de sua longa peregrinação, finalmente um amante do nosso Senhor - fez-me um enorme bem." [8]
E não se tratava de nenhuma admiração idealista ou acrítica. Apesar do respeito que Lewis tinha pelos filólogos ele também reconhecia seus limites, como se vê neste comentário:
O sonho do filólogo é de mapear todos os sentidos de uma palavra, gerando uma árvore semântica perfeita; cada ramo remetendo a um galho, cada galho, a um tronco. Isto m detrimento do fato de que seja algo que raramente possa ser feito com perfeição; afinal toda pesquisa redunda na incerteza. [9]
A propósito, esta incerteza não se encontra somente na ciência, mas até nos jornais, como tão bem notaram filósofos famosos como os integrantes da Escola de Frankfurt, inventora da teoria crítica e uma das criadoras da teoria da chamada indústria cultural, ou Foucault ou Maffesoli, que se interessaram pelo mesmo tema. Para Tolkien a verdade usualmente se encontra nos livros e não nos jornais. [10] Tanto Tolkien quanto Lewis faziam severas críticas às manifestações do totalitarismo da tecnologia, que ao invés de suscitar reflexão filosófica como à semelhança da leitura, banaliza a realidade e embrutece as pessoas. Assim a filosofia é remetida aos filósofos e representante das ciências humanas, entendidas como as únicas a terem a competência e o direito de filosofar. E uma das melhores formas de manifestação desta crítica está em O Senhor dos Anéis como bem coloca Chance:
À semelhança de Foucault, Tolkien, da mesma forma que o seu companheiro dos Inklings, Lewis, questionava a validade de se eleger as ciências humanas como representante da razão da sua geração. Tolkien manifestava esta crítica pela via da ficção através de instituições como Sauron e seus seguidores associados ao território da morte, Mordor, que ele governava de maneira tão tirana. Todos os três pensadores levantam objeções contra o espírito combativo das tecnologias aplicadas ao governo das nações do mundo pós-iluminista. [11]
Como tantos outros acadêmicos e escritores, (Júlio Verne, Monteiro Lobato, Cervantes, Huxley, Guimarães Rosa, Orwell) Tolkien e Lewis descobriram que a via da imaginação e da ficção é a melhor para se dizer o que tem que ser dito, fazendo a crítica do seu tempo e contribuindo, assim, para a transformação da história.
Tolkien e Lewis também mantinham o saudável hábito de fazer a crítica às suas respectivas obras de ficção, em particular ou na roda de amigos, os mencionados Inklings. De acordo com Lewis, eles costumavam reunir-se para discutir literatura, mas acabavam fazendo algo bem melhor, [12] isto é, teologia. Lewis mostrava-se crítico até em relação à reação do amigo às críticas em geral. Diz ele que Tolkien tinha duas reações a elas: "ou ele começa tudo de novo desde o começo, ou não liga a mínima." [13] Evidentemente então a amizade não era sem atritos, mas qual amizade verdadeira e sincera poderia ser?
O que interessa é destacar que a amizade entre Lewis e Tolkien contribuiu muito para lançar pontes importantes para o diálogo, não somente entre os campos da lingüística e da literatura, mas também entre estes campos e outras áreas das ciências humanas tais como a filosofia, a história, a educação e até a teologia.
No mencionado ensaio sobre O Senhor dos Anéis, Lewis arrola algumas razões, porque considera a obra indispensável, notando, em primeiro lugar, que não se trata de uma continuação do Hobbit. Pelo contrário, o Hobbit é que é uma tentativa de adaptação de O Senhor dos Anéis para crianças. A intenção de O Hobbit era de apresentar o jeito de ser e viver doméstico, quase vulgar e anárquico, de boa índole, apesar da aparência não muito atraente, destes seres peculiares, que, segundo Lewis, só um inglês seria capaz de criar. Já em O Senhor dos Anéis, a ênfase está no contraste entre os hobbits e o seu destino. Sua existência depende de poderes insuspeitos e surpreendentes. O mais irônico de tudo é que o herói principal deste drama épico é um hobbit, o mais frágil de todos os seres. Daí que Lewis também chamasse O Senhor dos Anéis de romance heróico, o que não representou para ele um retrocesso, como para certos críticos, e sim, um avanço. Trata-se de um exemplar único da capacidade de sub-criação de Tolkien, pela qual ele recria o mundo todo. O livro é assim reservado a leitores predestinados. Na verdade, conclui Lewis, O Senhor dos Anéis é um mito que não serve como meio de escape da realidade, como julgam alguns, mas como pura e saudável invencionice e consciente das ilusões da vida ordinária.
O elemento de nostalgia e angústia presente na obra, pode não ter efeito muito relaxante para o leitor, e diríamos que isto se aplica ainda mais ao filme, mas ele pode (esta é precisamente sua intenção) ser revigorador, trazendo-lhe novas esperanças em meio às suas próprias angústias. Assim, a arte mitopoética de Tolkien põe em jogo emoções, leveza, virtudes e horizontes distantes, procurando retratar o caráter paradoxal da vida humana que está neste vão intermediário entre a ilusão e o estar desiludido.
Naquele ensaio, Lewis contesta ainda as acusações de dualismo na obra, pois todos os personagens apresentam bons e maus aspectos misturados entre si. Não há pessoas, nem realidades pretas ou brancas. O melhor exemplo dessa mistura é Gollum. Contra a acusação de dualismo pesa ainda o fato de as coisas não acontecerem de forma aleatória. Não há relativismo, pois a ênfase está na providência divina que conduz tudo nos bastidores, mesmo que nem sempre de maneira visível. Lewis diz que Tolkien consegue tornar visíveis as almas invisíveis, trazendo para fora o que está dentro do coração. Desta forma, ele defende consistentemente a idéia de que a vida humana tem, de fato, este elemento heróico e mitológico, que só pode ser captado e devidamente degustado pelos que têm a simplicidade de uma criança no coração.
Em resumo: a amizade e diálogo mantidos entre Tolkien e Lewis provam que a interdisciplinaridade, esta palavra da moda nos meios educacionais, acontece antes de tudo entre pessoas que se relacionam em um nível de profundidade. O diálogo entre eles abriu oportunidades concretas para o combate a diversos preconceitos e articulação de campos fragmentários do conhecimento na modernidade. Antes de nos atermos a estas polêmicas, entretanto, é importante atentarmos para a obra em si.
Notas da autora
- Duriez, The Lewis Handbook, Grand Rapids (MI); Baker Book, 1990, 214.
- Lewis, Letters, Nova Iorque: Harvest, 1993, 440 (Carta de 1954).
- Cf. Carpenter, J.R.R. Tolkien: a Biography, London: Haper Collins, 2002, 198 e 202.
- Lewis, Os Quatro Amores, 2a. ed., São Paulo: Mundo Cristão, 1986.
- Cf. Carpenter; 2002, 202 ss.
- Lewis, God In The Dock, Grand Rapids (MI), Eerdmans, 1970, 333.
- Lewis, Studies In Words. Cambridge: Cambridge University Press, 1960, 3.
- Carpenter, 2002, 198-9.
- Lewis, C.S. Studies In Words. Cambridge: Cambridge University Press, 1960, 9.
- Carpenter, 2002, 158.
- Chance, Lord of the Rings, Kentucky: The University of Kentucky, 2001, 20-21.
- Lewis, Letters, 1993, 363 (Carta de 1941).
- Idem, 481 (Carta de 1959).
Gabriele Greggersen é Mestre e Ph.D em Filosofia da Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Fe-USP) e pós-doutora na área de História das Mentalidades pelo Instituto de Estudos Avançados da USP. Além de ter sido docente e pesquisadora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Greggersen criou e coordenou um curso de teologia à distância na Faculdade Teológica Sul Americana (Londrina/PR).
Tolkien e Lewis: quem copiou de quem ?
Escrito por Terra Magazine | 28 Julho 2008
Toda a amizade e influência mútua de Tolkien e Lewis foi motivo de livro, Tolkien e C.S. Lewis - O Dom da Amizade, traduzido por Ronald Kyrmse, que sugiro a leitura para esclarecer qualquer dúvida sobre esse assunto. Seria inevitável que elementos similares transitassem entre as obras, o que não diminui a qualidade e a profundidade das histórias, como foi mencionado em seus comentários de qualquer um deles. Ambos discutiam muito toda essa influência e, pelo ponto de vista literário, foram além de beber da mesma fonte, ambos analisavam as mesmas referências e trocavam sugestões sobre o que utilizar e como utilizar em seus livros.
C.S. Lewis, em foto de 1946
Não é segredo para ninguém que isso aconteceu. Aliás, é chover no molhado dizer que Tolkien foi quem mais estudou mitologia nórdica no último século e fez algo de útil com esse estudo. Mas os diretores de Principe Caspian não estudaram tudo isso, o que transforma as menções a esses elementos em algo um tanto grosseiro e inevitavelmente inspirado em outras obras. Quem copiou de quem mesmo?
Peter Jackson fez um ótimo trabalho na seqüência do Val do Bruinen, por exemplo, ao inserir levemente o formato de cavalos para o turbilhão que manda os Nazgûl passearem. Agora esse deus da água de Nárnia, que não conseguiu nem superar o Ulmo da capa do Contos Inacabados em termos visuais, por exemplo, parece tolo e a cena tem um timming ruim. Tudo bem que Lewis preferiu trabalhar com a personificação dos elementos da natureza, enquanto Tolkien foi mais sutil e permitiu que apenas algumas “forças” da Terra-média tivessem forma.
Todos os animais da essência de Nárnia são inteligentes, se comunicam e integarem com outras raças. Tolkien permitiu que só os Elfos conseguissem se comunicar com outras espécies. E isso leva a outro elemento que os inspirou: as árvores. Seria o fato de os Ents existirem e as árvores darem o ar da graça em Nárnia mera coincidência? Não, pelo contrário, foi influência mútua descarada. Outra coincidência foi o fato de, em ambas as obras, a carga das árvores, ou seja, o warcry da natureza acontecer exatamente no final dos “segundos” livros? Nesse caso, coincidência não existe, e insistir nela é pura bobagem.
Fico pensando quem copiou de quem? O fato é: Tolkien e Lewis cozinharam a mesma sopa, porem cada um fez o que bem entendeu com o seu quinhão. Mas com tanta mediocridade assim, quem copiou de quem mesmo? A resposta é que ambos copiaram um pouco, se inspirando mútuamente. É provável que Lewis tenha copiado um pouco mais de Tolkien, do que Tolkien de Lewis, mas e daí? Eram grandes amigos, e se Tolkien sentiu-se ofendido teve a grandiosidade de ficar calado, em nome da amizade.
Na verdade ambos além de copiarem (ou se inspirarem) uns nos outros, também pegaram as raízes dos seus contos das antigas lendas européias. Essas lendas por sua vez foram passadas de boca-em-boca por séculos, e só deus sabe de onde vieram antes disso... será que vale mesmo a pena pensar sobre quem copiou de quem?
Eduardo- Mensagens : 5997
Idade : 54
Inscrição : 08/05/2010
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