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O coração do discipulado
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O coração do discipulado
O CORAÇÃO DO DISCIPULADO
Época após época, uma tendência cultural, uma grade de valores universalmente aceitos, desafia a filosofia cristã. Deus exige que nos tornemos o tipo de pessoa apropriada para testemunhar em nosso contexto de vida. Que sacrifícios temos de fazer para estar à altura do que o Reino exige de nós? A questão não é nova. Cada período suscita respostas específicas e práticas que todo cristão tem de se dispor a revelar. O fundamental é testemunhar, de forma culturalmente apropriada, a essência do evangelho que não muda. Os desafios pedem respostas específicas, e variam conforme o período da história humana; mas o mesmo evangelho permanece a fonte de respostas para cada época. Todo cuidado é pouco: não podemos pregar respostas a perguntas da geração anterior, quando toda uma nova geração levanta novas perguntas para serem respondidas.
Voltemos no tempo a fim de encontrar um homem que ilustrou com sangue o que significa ser uma testemunha. Aquele jovem luterano, ao ambicionar se tornar um professor de teologia, provou ser mais do que um pensador consistente: os nazistas o silenciariam no campo de extermínio em 9 de Abril de 1945 por sua heróica resistência, apenas três semanas antes de Hitler cometer suicídio!
É preciso lembrar que muitas denominações cristãs apoiaram Hitler. Mas falamos de um jovem professor que lutava para que a igreja cristã fosse uma comunidade de fé autêntica. Ele estudara no Union Theological Seminary em Nova Iorque; apesar de proceder de uma família alemã da classe-média, ministrara preleções a pessoas negras em guetos do Harlem durante seus anos nos EUA. A convivência lhe ensinara que o evangelho vence as barreiras sociais.
Quando Hitler elegeu-se chanceler da Alemanha, em 30 de Janeiro de 1933, logo vieram as primeiras leis anti-judaicas. Em suas classes, por meio de artigos e pregações, o jovem teólogo luterano se opunha ao nazismo. Ele ainda auxiliou judeus a escaparem da Alemanha e se envolveu em conspirações para matar Hitler, num esforço desesperado para evitar a guerra que destruiria seu país. Preso em 1943, passou dezoito meses na prisão em Tegal, recebendo visitas de familiares e mantendo volumosa correspondência. Suas cartas estão entre os testemunhos mais impressionantes da literatura cristã recente.
Em Outubro de 1944, a cena mudou: um documento ligava o pensador cristão a conspirações contra Hitler. Transferido para uma prisão da Gestapo em Prinz–Albrecht Strasse, ele sofreu torturas desumanas. Mas manteve sua confiança inabalável em Deus. Aqueles que o conheceram no campo de concentração destacaram sua calma e fé. Seu testemunho de resistência e não-conformismo continua inspirador. Qual era o nome daquele destemido líder cristão? Dietrich Bonhoeffer. Ele ousou lutar contra o pensamento predominante, mas não o fez por mera rebeldia. Bonhoeffer entendeu sua época. Embora tenha sido radical ao se envolver em conspirações frustradas para assassinar o füher, o melhor de seu pensamento combativo não estava na força das armas, mas na resistência da fé. Com justiça, o memorial na igreja em Flosseburg apresenta a melhor síntese de sua vida: “Dietrich Bonhoeffer, uma testemunha de Jesus Cristo em meio à sua comunidade.”[1] Como poderíamos hoje ser igualmente reconhecidos hoje testemunhas de Jesus?
Para responder a essa pergunta, analisaremos o texto de Mateus 10:24-31, no qual Jesus fala à alma e mente dos doze discípulos. O Mestre ressalta os perigos que os esperavam e os prepara para a jornada repleta de sacrifícios e descobertas, percalços e recompensas. Bem-vindo ao coração do discipulado!
Filhotes saindo do ninho
Todo o capítulo 10 de Mateus conta sobre o envio dos doze discípulos. Era o primeiro voo solo daqueles filhotes de pássaro. Deveriam estar ansiosos. Por isso, Jesus fala o ABC de sua missão. Os olhos de Pedro se arregalavam ante as entonações precisas da voz do Mestre. Tiago e João entreolhavam-se diante do tamanho do desafio. Mas cada aluno reconheceu a verdade nas palavras do grande Professor. Os estudiosos destacam que Jesus apresenta aqui seu “mais crucial e definitivo ensino sobre discipulado”, revelando “a essência da dedicação e consagração cristãs.” Os ensinos que vemos são vitais a ponto de Jesus, como sábio professor, apresentá-los e repeti-los ao longo de Seu ministério.[2]
Mas em que consiste o discipulado genuíno? O conhecido escritor Tony Evans assim o explica: “Discipulado é o processo de crescimento pelo qual nós, como cristãos, aprendemos a entregar tudo da vida sob o senhorio de Jesus Cristo. […] Tornar-se um discípulo significa que Jesus Cristo precisa mais de você hoje do que precisou ontem, e Ele precisa mais de você amanhã do que Ele precisa hoje.”[3]
Obviamente, o aprendizado que Jesus proporcionou aos doze alcançarem não se relacionava com exercícios mentais (como em muitas escolas de filosofia na Grécia) ou repetição de tradições (como faziam os rabinos). “No preparo dos discípulos, o exemplo do Salvador fora muito mais eficaz que só por si qualquer doutrina. Ao serem separados dEle, todo olhar e palavra e entonação lhes acudia à memória. Muitas vezes, quando em conflito com os inimigos do evangelho, repetiam-Lhe as palavras e, ao verem o efeito produzido sobre o povo, muitos se regozijavam”, afirma Ellen White.[4]
Um Instrutor prático. Um grupo iniciante. A tarefa de se dirigir às “ovelhas perdidas da casa de Israel” (v.6). A cena está montada! Vejamos três importantes lições encontradas nos versos 24 a 33 de Mateus 10:
I - Se seguirmos o exemplo do Mestre, seremos tratados como Ele foi.
“O discípulo não está acima do seu mestre, nem o servo acima de seu senhor. Basta ao discípulo ser como o seu mestre, e ao servo, como o seu senhor. Se o dono da casa foi chamado de Belzebu, quanto mais os membros de sua família.” (Mt 10:24-25, NVI). Para o Salvador, a expectativa do discipulado consistia em viver sob a perspectiva do Mestre. Assim, no evangelho de Lucas, a frase “o discípulo não está acima de seu mestre” serve para explicar como um cego é incapaz de guiar a outro (Lc 6:39-40)![5]
No caso dos discípulos, eles não poderiam esperar melhor tratamento do que o próprio Jesus recebera. Ele os advertiu de que muitas pessoas dignas os receberiam (v.11-13), e fazendo isso, receberiam o próprio Deus (v.40), recebendo a recompensa pelo menor favor feito a um discípulo (v.41-42). Entretanto, outras pessoas não acolheriam sua mensagem, tornando-se mais passíveis de juízo do que Sodoma e Gomorra (v.15; cf.: Mt 11:20-24). O que os doze poderiam esperar, se o próprio Cristo havia sido acusado de ser endemoniado pelos líderes religiosos de sua época (cf.: Mt 12:24; Jo 8:48)?
Jesus utiliza um curioso jogo de palavras no verso 25. Embora os evangelhos tenham sido escritos em grego Koiné, o aramaico era a língua falada no dia a dia pelos judeus nos tempos de Cristo (e provavelmente usassem o grego como segunda língua). É um consenso que os discursos do Redentor foram proferidos originalmente em aramaico. Nessa língua, a expressão “dono (lit. “mestre”, be‘el) da casa (zebul)”[6] soava como a forma para designar Satanás. Belzebu aludia a Baal, o deus cananita, cutuado em Ecrom (2 Rs 1:2-3, 6, 16). O termo zebul pode ser traduzido por “casa exaltada”;[7] mas uma outra interpretação assume que, na linguagem rabínica, zebul se refere a “templo”. Assim, Belzebu, ou “mestre do templo”, seria uma forma de ofender diretamente a Jesus uma vez que, ao purificar o templo, Ele se auto-proclamara “mestre do templo”. Agora, os fariseus o acusavam de fazer essas coisas sobre a autoridade dos demônios, numa referência a Beelzibbul, senhor do sacrifício idolátrico.[8]
Enquanto muitos seguem Jesus por interesse em bênçãos materiais ou por ser algo popular, temos de avaliar a questão do discipulado sob a ótica de que a mesma rejeição que Jesus sofreu pesará sobre os Seus seguidores (cf.: Lc 9:58; Jo 15:18-25).
II- Se temermos a Deus, não temeremos as ameaças contra nossa vida.
Apesar das tribulações, nenhum discípulo precisa sofrer de insônia! As previsões de Jesus em Mateus 10 admitem perseguições constantes (v. 17-18, 21-23, 34). Contudo, em poucos versos, Jesus emprega três vezes a expressão “não tenham medo” (v. 26, 28, 31). Qual a razão para a coragem do discípulo, em face da oposição acirrada que ele enfrenta?
Para responder à questão, temos de atentar para o raciocínio de Jesus: “Não tenham medo dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Antes, tenham medo daquele que pode destruir tanto a alma como o corpo no inferno.” (Mt 10:28, NVI). Duas palavras merecem destaque: “destruir”, com implicação de “matar, levar à ruína, perecer, perder a vida, estar perdido, arruinado”. [9] A segunda palavra é “inferno”. O termo original é gehenna, conforme vertido pela tradução católica de Antônio Figueiredo: “[…]temei aquele que pode lançar na Geena a alma e o corpo.” A gehenna, literalmente vale do Hinom, era uma ravina ao sul de Jerusalém, no qual se consumiam pelo fogo corpos de animais mortos, criminosos e lixo comum. Jesus a usa como símbolo da destruição final.[10] Deus destruirá aqueles que se rebelaram contra Ele após mil anos contados a partir do retorno de Jesus à Terra (Ap. 20:4-6, 9-10).
Portanto, quando Jesus diz que devemos,a cima de tudo, temer “aquele que pode lançar na Geena a alma e o corpo”, Ele se refere a Deus. Deus julgará todas as coisas, porque não “há nada escondido que não venha a ser revelado, nem oculto que não venha a se tornar conhecido.” (Mt 10:26, NVI). Nosso temor a Deus deve nos levar a assumir o risco de pregar em um mundo hostil. Se rejeitarmos a missão, permaneceremos fora de risco de vida – dessa vida! Contudo, perderemos a vida eterna. Por outro lado, se nos arriscarmos, o máximo que farão contra nós será nos matar – mas teremos a vida eterna assegurada! Desta forma, os seguidores de Jesus desfrutarão de paz, mesmo se tiverem de encarar ameaças de poderes constituídos: “Quando a autoridade disser: ‘Eu chamarei você de pertubardor da paz’, eles [os discípulos] podem responder: ‘Assim chamaram a Jesus, que era verdade, e graça e paz’”.[11]
Jesus conclama os discípulos a pregarem publicamente, sem esconder sua fé nEle (v.27). “O que eu contei a vocês no escuro, falem na luz. O que eu contei a vocês em tempos calmos, em devocionais matutinos, em vigílias noturnas, espalhem”, como alguém parafraeou. [12] Pode parecer exagero do Mestre a proclamação nos telhados (v.27), mas os telhados era lugares de anúncios públicos na Palestina.[13] Em tempos em que a religião fica relegada à fé íntima, os cristãos têm de recuperar a dimensão pública de sua confissão. Devemos anunciar o senhorio de Jesus em todas as esferas: no lar, no entretimento, nos negócios, nos estudos, na política e onde quer que for.
Temos um Deus que promete cuidar de seus filhos. Jesus menciona os pardais (v.29, 31) como alvo do cuidado divino, mesmo sendo aves de valor tão ínfimo. Civilla Martin, autora de letras de muitos hinos evangélicos, menciona uma visita feita a um amigo acamado. Corria o ano de 1904. Ao ser perguntado se sua condição física não o desanimava, o amigo respondeu: “Senhora Martin, como posso eu estar desencorajado quando meu Pai celestial vela sobre cada pequeno pardal e eu sei que Ele me ama e cuida de mim?” Aquela inspiradora resposta serviu para que Civilla Martin escreve as palavras do hino His Eye is on the sparow (“seus olhos estão sobre o pardal”, em tradução livre), que, em nosso hinário, foi traduzido como “Cuidará de mim também” (HÁ 371).[14] Se, como Jesus disse, até nossos fios de cabelo estão contados (v. 30), significa que Deus conhece todas as circunstâncias e Seu cuidado e providência nos acompanharão. No temor de Deus, nada temos a temer!
III- Se apresentarmos Jesus, Ele nos representará.
“Quem, pois, me confessar diante dos homens, eu também o confessarei diante do meu Pai que está nos céus. Mas aquele que negar diante dos homens, eu também o negarei diante do meu Pai que está nos céus.” (Mt 10:32-31). A arte do fotógrafo, que imprime a imagem na película fotográfica, não é tão grandiosa quanto a impressão dos caracteres fielmente registrados pelos anjos em livros![15] Vivemos momentos solenes, que antecedem a volta de Jesus. Um julgamento está acontecendo no céu. Será impossível termos o nome aprovado sem um intercessor. Jesus é aquele que nos representa diante de Deus (1 Jo 1:9). Quando os livros são abertos, é Ele quem comparece à cena do julgamento (Dn 7:9-14), porque “o Pai a ninguém julga, mas confiou todo julgamento ao Filho […]” (Jo 5:22, NVI).
Mas nossa aprovação no julgamento não depende de pertencermos à igreja, mas em vivermos como a igreja. Verdadeiras testemunhas de Cristo não temem seu julgamento, o qual é realizado em favor delas. Quando o caráter de Jesus se reproduzir em nós, por meio de nossa consagração pessoal, o céu apenas confirmará o que foi visto na Terra: fé vitoriosa que alcançou a recompensa eterna.
1. As informações biográficas de Bonhoeffer foram extraídas de Mark Water, The New Encyclopedia of Christian Martyrs (Alresford, Hampshire : John Hunt Publishers Ltd, 2001), p. 939
2. John MacArthur, Matthew (Chicago : Moody Press, 1989), p. 212, 214.
3. Anthony T. Evans, God's Glorious Church : The Mystery and Mission of the Body of Christ (Chicago : Moody Publishers, 2003), p. 52.
4. Ellen G. White, O desejado de todas as nações (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2007), p. 242.
5. Willoughby C. Allen, A Critical and Exegetical Commentary on the Gospel According to S. Matthew – The International Critical Commentary on the Holy Scriptures of the Old and New Testaments (New York : C. Scribner's sons, 1907), vol. 26, p. 107.
6. Craig S Keener, InterVarsity Press: The IVP Bible Background Commentary : New Testament (Downers Grove, Ill. : InterVarsity Press, 1993) edição digital, comentário sobre Mt 10:24.
7. Bruce B. Barton, Matthew – Life Application Bible Commentary (Wheaton, Ill. : Tyndale House Publishers, 1996), p. 210.
8. Marvin Richardson Vincent, Word Studies in the New Testament (Bellingham, WA : Logos Research Systems, Inc., 2002), vol.1, p. 60-61.
9. Timothy Friberg, Barbara Friberg, Neva F Miller, Analytical Lexicon of the Greek New Testament – Baker's Greek New Testament Library (Grand Rapids, Mich. : Baker Books, 2000), vol. 4, p. 69.
10. Timothy Friberg et al, idem, p. 96.
11. Ellen G. White, Selected Messages, (Review and Herald Publishing Association, 2002), vol. 3, p. 421.
12. Jon Courson, Jon Courson's Application Commentary (Nashville, TN : Thomas Nelson, 2003), p. 75.
13. The Open Bible : New King James Version. electronic ed. (Nashville : Thomas Nelson Publishers, 1998, c1997), comentário sobre Mt 10:27.
14. Kenneth W Osbeck, Amazing Grace : 366 Inspiring Hymn Stories for Daily Devotions (Grand Rapids, Mich. : Kregel Publications, 1990), p. 143.
15. Ellen G. White, Maranatha (Review and Herald Publishing Association, 2002), p. 340.
Postado por douglas reis AQUI
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