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Falácia etimológica

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Preconceito é um pré-conceito?

Philip Durkin, etimólogo-chefe da Oxford English Dictionary, define assim “falácia etimológica”:

“[...] is the idea that knowing about a word’s origin, and particularly its original meaning, gives us the key to understanding its present-day use.” ["[...] é a ideia de que conhecer a origem das palavras, e particularmente seu significado original, dá a nós a chave para entender seu uso atual.”], e segue: “Very frequently, this is combined with an assertion about how a word ought to be used today: certain uses are privileged as ‘etymological’ and hence ‘valid’, while others are regarded as ‘unetymological’ and hence ‘invalid’ (or at least ‘less valid’).” ["Muito frequentemente, isso é combinado com uma afirmação sobre como uma palavra deve ser usada hoje em dia: certos usos são privilegiados como 'etimológicos' e, portanto, 'válidos', enquanto outros são considerados como 'não-etimológicos' e, portanto, 'inválidos' (ou ao menos, 'menos válidos')."] [1, p. 27.]

Um exemplo de falácia etimológica é a própria falácia etimológica. Se fizermos a etimologia da palavra ‘etimologia’, verificamos que ela vêm do grego ετυμολογίαetumología‘, de έτυμοsétumos‘ (‘verdade, verdadeiro’) e λόγοs ‘lógos’ (‘palavra, discurso’), para os gregos antigos era mesmo o ‘estudo dos significados e formas verdadeiros das palavras’. Mas hoje entende-se a etimologia somente como o ‘estudo da origem e evolução das palavras’.

Outro exemplo muito frequente é a palavra ‘preconceito’. No meio da discussão sobre, digamos, preconceito racial, alguém saca: “Mas preconceito é *pré*-conceito, eu tenho é *pós*-conceito”. Em sua origem preconceito vem mesmo de ‘pre’+'conceito’, um conceito formulado anteriormente. Mas repare que, de um lado isso não pode ser levado muito a sério: não costuma ser viável se ter um conceito formulado a respeito de algo do qual jamais se ouviu falar antes. De outro, o significado em ciências sociais é diferente, não depende de uma preconcepção, trata-se tão somente de uma ‘visão, geralmente negativa, injustificada a respeito de um indivíduo por pertencer a um determinado grupo social’ [2], não depende de haver ou não um contato prévio na formulação dessa opinião.

Ou podemos pensar na palavra ‘prejuízo’. Seu sentido mais comum no português contemporâneo é de dano, perda. Ninguém dirá que ‘arcar com o prejuízo’ signifique pagar por ter sido preconceituoso. Salvo em inglês, em que ‘prejudice‘ tem o mesmo sentido de ‘preconceito‘.

A lista é extensa, quase inesgotável. ‘Formidável’ vem do latim formidabilis ‘terrível’ (> formidare ‘temer’ > formido ‘terror, fantasma’) e, em geral, é algo positivamente admirável (ainda que haja uma acepção que conserva o sentido original). Mesmo ‘terrível’, com frequência é usado em um sentido positivo: “Ele é terrível com a bola” pode muito bem significar que o jogador é muito habilidoso e não um perna-de-pau. Ou ‘sinistro’ que também tem sido usado em um sentido positivo. Esses exemplos nos mostram não apenas que as palavras mudam de sentido – sem que a derivação do sentido original signifique que os novos sentidos sejam errados -, mas que é um fenômeno que não está restrito a um passado remoto. Podemos organizar esses exemplos em grau de modificação de sentido – adquirindo um sentido de certo modo oposto ao original – do já consolidado ao ainda em processo incipiente: formidável, assombroso, espantoso, terrível, sinistro. (Aparentemente há uma necessidade vocabular de expressar a admiração em nível hiperbólico – algo que de tão bom chega a assustar – e à medida em que a expressão anterior se consolida no novo uso, perde essa vivacidade, então uma nova expressão ainda com significado de ‘algo que mete medo’ é cooptada. Edmund Burke, por certo, acharia isso sublime [3, 4].)

As palavras também podem derivar de sentido para o lado negativo. ‘Ordinário’, inicialmente, é simplesmente ‘algo comum, dentro da ordem natural das coisas’, ‘medíocre’, também originalmente, é apenas ‘algo mediano’ – mas a carga negativa atualmente é a mais comum: “Seu ordinário” é uma ofensa e “desempenho medíocre” é uma avaliação ruim.

Ou quando alguém diz: “fui de carro até o trabalho”, ninguém imagina que a pessoa foi de carruagem. “Carro” vem do lat. carrus ‘veículo romano, ou celta, de duas rodas, puxado a cavalo, usado em batalhas’ (que por sua vez deve ter vindo do celta ou do gaulês ‘karros‘ < proto I.E. *kers- “correr”). O sentido de veículo de rodas a tração animal ainda é mantido em certos usos: como “carro de boi”, e o sentido mais geral de veículo sobre rodas é empregado, por exemplo, em empresas de ônibus, que referem aos veículos como carros. Naturalmente, não faz sentido afirmar que carro não possa ser usado como sinônimo de automóvel de passageiro.

“Simpósio” vem do grego συμπόσιον,ou sumpósion,ou (“banquete, festim” < συμπίνω sumpínō “beber junto” < συμ sum “junto” e πίνω “beber”). Mas um simpósio técnico não precisa ser um festim (ainda que, em geral, haja uma confraternização em um bar, isso não faz parte do programa) – um simpósio de combate e prevenção do alcoolismo não é um oxímoro.

“Escravo” vem do lat. sclavus, slavus (do gr. biz. ‘sklábos‘, ‘sklabénós‘ < eslov. ‘Slověninŭ‘ < ‘Slověnci‘ “povo famoso” < proto-I.E. *kleu- ‘ouvir’) referências aos Sclāvus
‘eslavos’ (principais povos escravizados na Europa Central durante a
Idade Média por germânicos e bizantinos). Ninguém vai imaginar que não se possa aplicar o termo para se referir aos cativos de origem africana nas Américas.

Se as origens não necessariamente têm a ver com os significados atuais das palavras, para que serve a etimologia afinal de contas? E o que legitima ou não o uso com este ou aquele significado? Abordarei isso em oportunidades futuras.

Mas se alguém então lhe disser que não é preconceituosa em relação a um grupo de pessoas porque ela tem um pós-conceito, diga-lhe: assim não é, nem se lhe parece.

Referências:
[1] Philip Durkin. The Oxford Guide to Etymology, 2009. Nova Iorque: Oxford University Press. 347 pp.
[2] Tommy Boone. Dealing with prejudice.
[3] Edmund Burke. A Philosophical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful.
[4] Andrea Peixoto. Sublime.
Eduardo
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