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O Velho é sempre o Outro
O Velho é sempre o Outro
“A escritora Simone de Beauvoir fala que a velhice pertence à categoria dos “irrealizáveis” de Sartre, isto porque o sujeito idoso não pode ter uma experiência interior plena do ser velho. Trata-se, portanto, de uma experiência em si própria, irrealizável: O que somos para outrem, é impossível vivê-lo no modo do para-si.
O velho não pode conceber sua imagem como é para os outros, ou seja, ele não pode assumir a velhice enquanto exterioridade nem pode assumi-la existencialmente, tal como ele é para o outro, fora de si. É o olhar do outro (aquele que observa do exterior), que sinaliza nosso envelhecimento, nossa decadência. Em linhas subseqüentes, a referida autora nos adverte:
[...] para reencontrar uma visão de nós mesmos, somos obrigados a passar pelo outro: como esse outro me vê? Pergunto-o ao meu espelho. A resposta é incerta: as pessoas nos vêem, cada uma à sua maneira e nossa própria percepção, certamente, não coincide com nenhuma das outras. (BEAUVOIR, 1990, p. 363-364)
Que cumplicidade se encontra no olhar dos outros? O que ninguém quer ver de si? Partindo desta idéia, o velho será sempre o outro, em quem não nos reconhecemos. Como nos diz Carlos Drummond de Andrade: os outros enxergam a velhice que se esconde em nós.
A velhice é particularmente difícil de se assumir, porque sempre a consideramos como algo estranho: será que nos tornamos uma outra pessoa, enquanto permanecemos nós mesmos, apenas em idades diferentes? Tal situação é vivida com espanto e desconforto.
Para Messy (1999): A imagem da velhice parece uma imagem “fora”, no espelho, imagem que nos apanha, quando é antecipada e produz uma impressão de inquietante estranheza.73 Este sentimento do estranho inquietante foi descrito por Freud em seu artigo “O Estranho” (1919), quando tinha aproximadamente uns 63 anos. Recordemos uma passagem em que ele relata um episódio acontecido consigo mesmo, ao defrontar-se com sua própria imagem espontânea e inesperadamente:
Posso contar uma aventura semelhante que ocorreu comigo. Estava eu sentado sozinho no meu compartimento no carro-leito, quando um solavanco do trem, mais violento do que o habitual, fez girar a porta do toalete anexo, e um senhor de idade, de roupão e boné de viagem, entrou. Presumi que ao deixar o toalete, que ficava entre os dois compartimentos, houvesse tomado a direção errada e entrado no meu compartimento por engano. Levantando-me com a intenção de fazer-lhe ver o equívoco, compreendi imediatamente, para espanto meu, que o intruso não era senão o meu próprio reflexo no espelho da porta aberta. Recordo-me ainda que antipatizei totalmente com a suaaparência. (FREUD, 1919, p. 309)
Esse trecho ilustra muito bem o que acontece quando o apavorante se liga ao familiar. Apesar de íntima, em nada se parece com a imagem que se presentifica no espelho. Provém daí, portanto, a sensação de desagrado, de inquietante estranheza. O assustador constituiria, assim, o estranho, que não é nada novo ou alheio. Um paciente idoso, de 79 anos, dizia-me: “Um dia eu cheguei em casa, me olhei no espelho, tomei um susto e me perguntei: esse sou eu mesmo? (sic).
O espelho se mostra traiçoeiro, estaria o enganando. Esta não seria a sua “verdadeira” imagem. Recordo-me de um outro relato clínico de um idoso, aos 61 anos que dizia ao referir-se ao espelho: “eu não sou o que ele mostra, está deformando a minha imagem” (sic).
O espelho apresenta-se como opressor, mostra nosso desleixo com nossa imagem, nos cobra o cuidado com a aparência, reflete nossas nostalgias, saudades, alegrias e melancolias remetendo, também, à vivência do tempo que deixa suas marcas inscritas em nosso rosto, no corpo. Relatava-me este Sr.: “eu me olho no espelho e vejo a decadência física e digo: quanto cabelo branco, está todo grisalho [...]. Eu não me reconheço no sentido do rosto envelhecido, da minha aparência enrugada”. (sic).
Lembro-me de uma outra Sra, a quem chamarei de Dulce, de 75 anos que referiu: “certo dia, eu me olhei com muita atenção no espelho e vi no meu rosto as rugas, sinal que o tempo passou. Na cabeça, vi os fios brancos”. (sic).
A imagem do velho se desvanece no espelho, no qual não se reconhece neste rosto de hoje enrugado que é o mesmo de ontem, mas tão diferente, isto é, algo se transformou, se perdeu. Será que o idoso quando se olha no espelho se reconhece nessas rugas? Na aparência física totalmente modificada? O velho no espelho pode tornar-se um outro, ou seja, aquilo que ele não quer ser, conforme afirmou Simone de Beauvoir “o velho é sempre o outro”. E, mais adiante acrescenta:
[...] em mim, é o outro que é idoso, isto é, aquele que sou para os outros e esse outro sou eu [...] A aparência de nosso corpo e de nosso rosto nos informa com mais certeza: que contraste com nossos 20 anos! Só que essa mudança se opera continuamente, e nós mal a percebemos [...]. Em nós é o outro que é velho, que a revelação de nossa idade venha dos outros.
O corpo revela uma velhice não esperada, não desejada que amedronta e assusta por se apresentar como uma grande ameaça: confronta-nos com nossa finitude e lembra que nosso ser está próximo de deixar de existir.
Quando o idoso não se reconhece na sua imagem, talvez permaneça fixado a um tempo passado, não aceitando o presente, o que é hoje. A temporalidade é imanente e nos constitui. Reconstituímos o passado, vivemos o presente no instante em que estamos, dando-lhe uma continuidade e, além disso, nos projetamos para o futuro. O corpo do velho que está diferente escancara esta relação com o tempo. Sobre isso, Délia Goldfarb (1998), traz uma importante contribuição:
O tempo do envelhecimento está ligado à consciência da finitude, que se instaura a partir de diferentes experiências de proximidade com a morte durante a vida toda, mas que na velhice adquire a dimensão do iniludível.
A velhice nos remete também à nossa história. A título ilustrativo, basta lembrarmos que é muito comum ficarmos espantados quando vamos rever álbuns de fotografias. Ao depararmo-nos com os “velhos retratos”, por vezes, dizemos: “Era eu nessa foto?”. Daí provém as recordações de como se era no passado: modo de se vestir, corte e penteado do cabelo, aparência mais jovial.
Para pensar esta questão, trago uma situação que acontece muito freqüentemente no atendimento clínico aos idosos. Eles trazem para o setting terapêutico seus álbuns de fotos. Seria, talvez, uma forma de resgatar suas histórias através das recordações que constituem sua identidade. Nelas, vem à tona toda a bagagem de reminiscências e experiências que eles têm e que atualmente dificilmente podem transmitir, porque “ninguém” os escuta, nem valoriza o que têm a dizer.
O sentimento de estranheza também é revelado quando os idosos revêem as fotografias da juventude e passam a perceber as diferenças, o que lhes faz experimentar um certo espanto. Dona Marinete, de 77 anos, trouxe o álbum de seu casamento e comentou: “Ah! Olha como eu era [...] como eu estava alegre, bonita [...]. Eu era bem magrinha, tinha a cintura fina [...]. Era muita vaidosa, fazia diferentes penteados no meu cabelo, só usava vestidos da moda, sapato alto e de bico fino”. (sic).
Numa outra sessão, mostrou-me algumas fotos das viagens que fazia com sua família, dos passeios, hotéis, praias: “Eu era muito bonita quando era jovem [...]. Muitas pessoas comentavam, admiradas a maneira como eu me produzia, me vestia bem, meu rosto era bem afilado [...]”. (sic). O que chama a atenção nesses depoimentos é que o rosto procurado, quer no espelho ou nas fotografias, coincide com aquele de uma fase anterior, correspondente a uma maior satisfação narcísica.
É interessante também observar a utilização do verbo “era”. E não é mais? Quem seria, então? Um outro? A imagem do espelho ou da foto não mais corresponde à imagem armazenada na memória e que segundo Messy, “pode ser confundida com a imagem de um pai ou outro parente idoso, talvez morto”. Uma de nossas entrevistadas, de 64 anos, ao comentar seu próprio processo de envelhecimento disse:
[...] Na minha juventude eu era uma pessoa velha. Minha mãe morreu mais nova do que eu. Mamãe morreu com 62 anos e mamãe era uma velha no sentido lato, de cabelo, de roupa e até lentidão de movimento também, não fazia exercício, naquele tempo, a geração anterior à minha não fazia [...] Então, na minha imagem, mamãe era uma pessoa lenta, era uma pessoa de cabelo branco, envelhecida. Mamãe era uma pessoa velha com 62 anos [...]. (ENTREVISTADA 1, 64 anos)
Sua figura materna já não existe mais como respaldo e a entrevistada se volta para o passado na tentativa de encontrar os “bons-objetos”, nomeadamente, a mãe.”
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É isso!
Fonte:
DANIELLE DE ANDRADE PITANGA: “Velhice na Cultura Contemporânea”. (Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Universidade Católica de Pernambuco, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia Clínica. Orientador: Profÿ. Drÿ. Zeferino de Jesus Barbosa Rocha). Universidade Católica de Pernambuco. Recife, 2006.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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