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Davi derruba o Golias do minimalismo

Gustavo Adolpho Souteras Barbosa

Em 2003, foi publicado no Brasil o livro “E a Bíblia não tinha razão”, de Israel Finkelstein. Este livro tem trazido desde então, a visão minimalista da arqueologia bíblica para o público brasileiro, principalmente o público cético. Os minimalistas são aqueles grupos de arqueólogos que atribuem o mínimo de historicidade ao relato bíblico, ao contrário dos maximalistas. Eu diria até que Finkelstein é o guru dos minimalistas, embora ele não se considere um1.

Entre vários assuntos tratados no livro, Finkelstein trata da historicidade do reinado de Davi e Salomão. Basicamente o que ele argumenta é que embora possa se provar que Davi foi realmente um personagem histórico, seu reino foi um reino de pastores. Não houve um desenvolvimento do povo hebreu, como o demonstrado na Bíblia2. Mal sabem seus leitores que Finkelstein tinha acabado de rever sua posição anterior sobre os reinos de Davi e Salomão3.
Foi com o texto The Birth & Death of Biblical Minimalism4 (O nascimento e morte do minimalismo bíblico) que Yosef Garfinkel iniciou uma série de comentários na internet recentemente, questionando o minimalismo, e até mesmo “sepultando-o”. Yosef Garfinkel descreve neste texto, a trajetória do minimalismo bíblico desde seu nascimento, por volta de 1930, até recentemente, quando ele mesmo foi protagonista de uma descoberta surpreendente no vale de Elah: uma fortaleza que pertencia ao reinado de Davi.
Garfinkel inicia seu texto lembrando seus leitores que houve uma época que a própria existência de Davi era questionada. Para os minimalistas, o rei Davi era tão histórico quanto o rei Arthur5. Garfinkel então descreve como logo os minimalistas tiveram que mudar de ideia:

Mal o argumento minimalista tinha sido desenvolvido e ele tinha sido profundamente minado por uma descoberta arqueológica. Em 1993 e 1994, vários fragmentos de uma estela aramaica foram encontradas na longa escavação de Tel Dan liderada por Avraham Biran da Hebrew Union College em Jerusalém. As referências históricas nas inscrições e na paleografia das escritas deixou claro que elas datavam do nono século A.C. Além do mais, o texto especificamente menciona um rei de Israel e um rei da “Casa de Davi” (em hebreu, bytdwd ), ou seja, um rei da dinastia de Davi.
Esta descoberta levou a uma reexame da bem conhecida Estela Mesha, uma inscrição moabita contemporânea descoberta há mais de um século atrás. André Lemaire, um paleógrafo veterano da Sorbonne, identificou naquele texto uma referência adicional à Casa de Davi. Isto foi subsequentemente confirmado por outro paleógrafo veterano, Émile Puech da École Biblique et Archéologique Française em Jerusalém.
Assim, há pelo menos uma, e possivelmente duas claras referências à dinastia de Davi no nono século A.C., somente 100 a 200 anos depois de seu reinado. Esta é uma clara evidência que Davi era de fato uma figura histórica e fundador de uma dinastia.

O que fizeram os minimalistas depois de tais descobertas? Reagindo com pânico, tentaram de todas as formas reinterpretar os achados. Garfinkel nos relata que eles procuram tratar a palavra bytdwd como o nome de um lugar. No entanto, não há bases para tal interpretação.
Mas esta foi apenas a primeira etapa da argumentação minimalista. Como a historicidade de Davi não poderia mais ser questionada, os minimalistas adotaram uma nova estratégia, que é a adotada por Finkelstein: todas as descobertas anteriormente atribuídas a Davi sofreriam uma redução de sua datação, por isto é chamada de “Baixa cronologia”.
Como funciona esta argumentação? Os arqueólogos dividem a cronologia de Israel em períodos. Geralmente eles chamam o período tribal de Israel de Idade do Ferro I, que na cronologia tradicional corresponde ao período dos juízes. O período seguinte, a Idade do Ferro II, é caracterizada pela organização urbana e o estado centralizado. Há um consenso geral sobre estes dois períodos, e há também um consenso geral de que Davi e Salomão reinaram de 1000 a 925 A.C. A grande questão é situar estes 75 anos: estão na Idade do Ferro I ou II? Ou melhor dizendo, os reinos de Davi e Salomão eram reinos tribais ou reinos urbanos? Na cronologia tradicional, a transição entre as duas idades ocorre por volta do ano 1000 A.C., colocando os dois reinados na idade do Ferro II.
Os minimalistas por outro lado, reduzem esta data. Finkelstein por exemplo a situa por volta de 925 A.C., colocando os dois reinados na idade do Ferro I. Assim, todos os grandes achados, que incluíam monumentos arquitetônicos, são atribuídos a um período posterior, e todo o material que foi atribuído a um período anterior (na cronologia tradicional, o período dos juízes), que é bem escasso, é agora considerado evidência da vida nos dias de Davi e Salomão. Com pouca evidência arqueológica sobre o reino de Davi e Salomão, não podemos falar muito sobre estes dois reinados, como por exemplo, se eles tinham um alfabeto, que poderia ser usado para escrever a Bíblia... É fácil perceber como esta simples mudança pode trazer grandes consequências, e é fácil perceber o que está em jogo aqui.
Os defensores da Baixa Cronologia têm baseado seus argumentos principalmente em datação radiométrica, ou seja, datando restos orgânicos presentes nas escavações. Assim, várias amostras têm sido enviadas para os laboratórios para comprovar ou refutar a Baixa Cronologia. Há certos ares de precisão científica nesta datação, mas a verdade é que ela pode ser bem imprecisa, dependendo de uma série de fatores. Um bom exemplo é saber com precisão de que stratum o material foi retirado: a cidade poderia existir, por exemplo, desde o ano 1000 A.C., mas se uma amostra pega na cidade existia desde o ano 900 A.C., esta amostra poderia levar a uma conclusão errada. Outras fontes de erro na datação poderiam ser mencionadas, como tempo de vida do material orgânico, o que nos leva a ver a datação radiométrica apenas como uma forma de se determinar qual a data provável daquilo que está sendo datado. Os resultados da datação radiométrica são tão vagos que eles são usados para dar suporte tanto à Baixa Cronologia quanto a Cronologia Tradicional!
No entanto, este tipo de datação nem sempre tem tantos problemas. O local a ser datado pode ter sido isolado por alguma camada de destruição, então o arqueólogo que está datando o local pode ter certeza que ali só existirá amostras do período de existência daquela cidade, por exemplo. É o que Garfinkel comenta sobre alguns achados no norte de Israel:
Mais recentemente, amostras de radiocarbono mais confiáveis foram testadas de Megido (Stratum K-4), Yokneam (Stratum XVII) e Tell Keisan (Stratum 9a), todas no vale Jezreel e na planície Acco, ou seja, todas no norte do reino de Israel. Estas camadas representam o último estabelecimento da idade do Ferro I em cada local. Todos estes strata foram seguidos por camadas de destruição, que fazem a datação mais confiável. Os resultados foram escritos em 2007, apesar de não publicados até 2009, por Finkelstein e seu colega Eli Piasetzky. Os resultados mostram uma data de destruição média descalibrada de 2852 ± 13 anos B.P. (before present). Depois da calibração, a data está por volta de 1000 B.C.E. Esta é exatamente a datação da cronologia tradicional há décadas. Assim, Finkelstein não é somente o fundador da Baixa Cronologia, mas também seu coveiro.

Os minimalistas no entanto continuam mantendo seu posicionamento, tendo como base outras datações feitas no norte do reino de Israel, onde cidades da Idade do Ferro II são de fato datadas do final do décimo século antes de Cristo.
É dentro deste contexto que o achado de Garfinkel põe mais lenha na fogueira. Suas escavações em Khirbet Qeiyafa descobriram nada mais do que uma cidade muito fortificada, que reflete uma sociedade altamente organizada. Além disto, a região foi ocupada apenas por um período, exceto por uma ocupação no período helenístico e uma fortaleza bizantina no alto da região (com ocupações tão distantes umas das outras, há uma facilidade maior em se datar a ocupação). A cidade é claramente uma cidade do período da Idade do Ferro II, que acabou com sua destruição.
Assim, uma datação radiométrica foi feita em poços de oliva, que possuem uma vida útil mais curta, e os resultados demonstram que a cidade não pode ser datada mais tarde que 969 B.C.E., com 77,8% de probabilidade. Esta data se encaixa bem na idade atribuída para o reinado de Davi, e é muito antiga para o reinado de Salomão. Assim, a escavação de Khirbet Qeiyafa faz com que o período da Idade do Ferro II se inicie em Judá pelo final do décimo primeiro século antes de Cristo, acabando com a argumentação a favor da Baixa Cronologia.
Mas de fato, ela não acaba por aqui ainda. A nova questão é determinar se Khirbet Qeiyafa é de fato, uma cidade judaica, ou uma cidade filisteia, parte do reino de Gath, identificado com Tell es-Safi, há 10 milhas de Qeiyafa. É neste ponto que estão as disputas sobre o local. Garfinkel argumenta que é uma cidade judaica por quê:
1. Nenhum osso de porco ou cachorro foi encontrado em Qeiyafa, enquanto que em Gath (Tell es-Safi) porcos e cães eram parte da dieta, como indicado pelos restos de ossos encontrados lá.
2. A entrada principal de Qeiyafa estava direcionada para Jerusalém ao invés da Filisteia.
3. Qeiyafa está circulada por uma parede dupla, ou casamata. Muralhas de cidades como esta eram desconhecidas na Filisteia, mas comuns em Judá.
4. Na Filisteia somente cinco cidades maiores – aquelas mencionadas na Bíblia: Ashkelon, Ashdod, Gaza, Gath and Ekron – eram fortificadas. Não se conhece nenhum assentamento na Filisteia com fortificação. Não é assim em Judá, consistente com a maior fortificação em Qeiyafa.
5. O agora famoso óstraco de Qeiyafa está inscrito com letras “proto-cananitas” na linguagem hebraica, de acordo com o nosso epígrafo, Haggai Misgav. Na recentemente publicada inscrição da filisteia Gath, o nome é Indo-Europeu. A inscrição de Gath é também “proto-cananita”, mas a linguagem é provavelmente filisteia.

É o óstraco mencionado aqui por Garfinkel que mais chama a atenção: ele mostra que uma cidade situada na fronteira do reino tinha pelo menos escribas capazes de escrever ou ler tais textos.
É interessante também o que Garfinkel comenta sobre a datação radiométrica que dá suporte à Baixa Cronologia: segundo esta, cidades no norte de Israel datam do fim do décimo século antes de Cristo. Para ele, isto está completamente de acordo com os dados registrados pela própria Bíblia, que comenta que tais cidades foram de fato construídas 80 anos depois de Jerusalém. Mas os minimalistas acabam invertendo a ordem das construções, afirmando que as Escrituras foram feitas depois deste período.
Certamente muito há para ser descoberto ainda. Mas pelo que já foi visto até aqui, há uma grande probabilidade dos minimalistas serem mais uma vez refutados. E se existiu um reinado de Davi, um reinado cujo povo era altamente organizado, houve também um período de tempo que este povo se organizou. Houve um período de tempo em que aquele povo nômade se tornou um povo urbano e culto, desenvolvendo um sistema de escrita peculiar. Certamente as descobertas em Khirbet Qeiyafa abriram as portas para grandes discussões.


Notas

1. Em uma entrevista à Biblical Archaeology Review, ele se define como “de centro”. Ver entrevista em http://www.bib-arch.org/bar/article.asp?pubid=bsba&volume=36&issue=3&articleid=5

2. O Ayrton's Biblical Page fez uma resenha do livro, onde comenta que “Para Finkelstein e Silberman a evolução dos primeiros assentamentos para modestos reinos é um processo possível e até necessário na região. Descrevendo as características do território de Judá, concluem que este permaneceu pouco desenvolvido, escassamente habitado e isolado no período atribuído pela Bíblia a Davi/Salomão: é o que a arqueologia descobriu”. A resenha completa pode ser lida em http://www.airtonjo.com/resenhas05.htm.

3. Asaf Shtull-Trauring descreve esta fase de Finkelstein em um artigo: “Manifestamente, esta descoberta exigiu uma reformulação do minimalismo, e Finkelstein foi o primeiro a assumir a tarefa. Na década de 90, ele publicou uma série de artigos nos quais ele colocou a sua tese, que integrou a crítica minimalista em uma versão mais moderada. Em 2001, ele e Neil Asher Silberman, um editor que contribuía com a Archaeology Magazine, escreveram "The Bible Unearthed" onde eles publicaram suas teses a respeito da validade histórica da narrativa Bíblica”. A descoberta aqui mencionada é a descoberta da Estela de Dan, que mencionaremos mais adiante. O texto completo de Asaf pode ser lido em http://www.haaretz.com/weekend/magazine/the-keys-to-the-kingdom-1.360222.

4. Lido em http://www.bib-arch.org/bar/article.asp?PubID=BSBA&Volume=37&Issue=3&ArticleID=6

5. Philip R. Davies, “‘House of David’ Built on Sand,” BAR 20:04.
Eduardo
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