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A crítica linguística na interpretação da Bíblia
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23062011
A crítica linguística na interpretação da Bíblia
por Milton L. Torres, PhD
Acredito ter sido Mark Twain quem disse que certa vez um homem segurou um gato pelo rabo e aprendeu 40% mais acerca de gatos do que ele sabia antes. O que quero dizer é que a prática é o elemento mais importante do aprendizado. E quando falamos do ensino de línguas antigas, o acesso do aluno aos textos é ainda mais importante, pois quando isso acontece o aprendizado se torna efetivo.
É, pois, muito interessante que, nos cursos de grego, o aluno tenha os textos antigos à mão. A interpretação dos mesmos se torna uma aventura e uma necessidade. Na mesa redonda que abriu este seminário eu declarei, com Meillet (1930, p. 185), que o estudo do grego antigo é uma espécie de “álgebra linguística”. A interpretação do dado linguístico é, às vezes, truncada e hermética. É, por isso, que há a necessidade de se recorrer à chamada crítica linguística a fim de que se possa recuperar o significado de uma determinada lexia no recorte sincrônico em que se pretende estudá-la.
Um texto antigo que muito se tem prestado à aplicação de um criticismo linguístico rigoroso é o do Novo Testamento (doravante, NT). Ladd (1967, p. 83) já afirmava que a única maneira de se estabelecer o significado das palavras do NT é através de um criticismo linguístico científico.
Em qualquer situação da vida, há riscos de que não alcancemos a compreensão exata de um determinado evento. Mas esses riscos são muito maiores quando estamos separados do referido evento por milhares de anos. A própria mensagem do Cristianismo não foi compreendida com exatidão em muitos casos - o ápice daquela mensagem ocorreu na cova mais profunda da tragédia humana: uma crucifixão. Historicamente, a morte de Jesus foi feia, brutal, sangrenta, um espetáculo revoltante. Naquele momento, no entanto, ela não foi compreendida como algo incomum a não ser por dois homens: um ladrão e um soldado. Contudo, mesmo para eles, o mais impressionante não era a morte em si, mas a conduta de Jesus em face das circunstâncias.
Por isso, pode-se dizer que sem palavras para explicar o significado de um evento, sua compreensão é incompleta. É necessário um kerygma através do qual se possa dar aos homens uma interpretação mais acurada de um dado evento.
O criticismo linguístico nos tem provido elementos importantes para a determinação mais precisa do significado das palavras do NT. Adolf Deissmann, por exemplo, comprovou que o grego do NT era a língua comum, coloquial e não literária daquela época: a coiné. Como resultado de sua descoberta, houve uma proliferação de traduções do NT em línguas modernas, em uma reação contra as versões “clássicas” que privilegiavam a língua literária.
Da mesma forma, até 1886 pensava-se que 767 palavras do NT eram peculiares ao grego bíblico, hoje, como resultado da aplicação do criticismo linguístico, essa lista baixou para 50 e tende a continuar decrescendo.
Além disso, a partir do momento em que a crítica linguística foi aplicada aos estudos neo-testamentários, descobriu-se que o background helênico tem importância comparável ao judaico na semântica do NT. Até então, quando se buscava o significado de um termo do NT era comum que os estudos se voltassem mais para a análise da cultura hebraica. Agora sabe-se que isso não basta: é preciso captar tal significado também na cultura helênica que influenciou sua escrita.
A crítica linguística, quando aplicada à Bíblia, consiste em estudar as línguas bíblicas em seu escopo mais amplo, de modo que o vocabulário, a gramática e o estilo dos escritos bíblicos possam ser compreendidos da maneira mais precisa não apenas pela comparação com outros escritos bíblicos, mas também com outros escritos na mesma língua ou em línguas afins. O grego do NT, por exemplo, é representativo do grego helenístico escrito no séc. I AD e varia da coiné literária de Hebreus, Pedro e Lucas até a língua coloquial de Marcos e Mateus, tendo recebido influências do aramaico e do hebraico.
A crítica linguística tem iluminado o significado de termos obscuros do NT, especialmente dos chamados hapax legomena (aquelas palavras que só ocorrem uma única vez) e mesmo de termos pouco frequentes. Isso aconteceu, por exemplo, com o vocábulo arrhabôn que aparece em Ef. 1:13-14. Até recentes estudos linguísticos imaginava-se que o termo significasse “garantia”: “Tendo nEle crido, fostes selados com o Espírito Santo da promessa, o qual é a garantia da nossa herança.” Depois de algumas descobertas papirológicas, tem-se chegado à conclusão de que o termo era comum na coiné para designar o primeiro pagamento na aquisição de algum bem a crédito, uma espécie de “entrada”. Assim temos uma tradução mais precisa.
A utilização de uma metodologia rigorosa e científica se afigura como uma chave interpretativa principalmente por causa do momento que vive a interpretação bíblica que ora se caracteriza por um caos hermenêutico. A muitivocidade dos escritos bíblicos tem sido tão enfatizada que atualmente qualquer interpretação parece ser possível.
Esse procedimento parece oportuno para conduzir os intérpretes de volta ao texto. Não se quer, com isso, sugerir que a interpretação dos escritos bíblicos possa prescindir das considerações referentes ao autor e ao leitor, mas é imprescindível que não se perca o texto de vista!
Em um recente colóquio acerca da exegese bíblica, o Dr. Utzschneider afirmou que a interpretação do escritos bíblicos se encontra mergulhada em uma crise tríplice:
1o. falta de consenso e uma certa predisposição contrária à teorização;
2o. alternativas inadequadas e um excesso de teorização;
3o. falta de aceitação fora dos meios acadêmicos.
Pode-se dizer que a exegese bíblica vê muito bem com um olho (o histórico), mas é consideravelmente cega do outro (o estético). Esse caos hermenêutico resulta de, pelo menos, duas dificuldades:
1a. a falta de harmonização dos elementos da chamada “tricotomia das intenções”: intentio auctoris, intentio operis e intentio lectoris (isso numa época em que Umberto Eco defende a interação dos três elementos: autor, texto e leitor!);
2a. a constante diástase das abordagens sincrônica e diacrônica.
Comunicação apresentada por Milton L. Torres durante o II Seminário de Linguística Aplicada, realizado no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, em 1997.
Black, David Alan & Dockery, David S. (Eds.). New Testament criticism and interpretation. Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 1991.
DiPuccio, William. Hermeneutics, exegesis, and the rule of faith: an ancient key to a modern question. Premise, v. 2, n. 9, 19 out., 1995.
ECO, Umberto. The limits of interpretation: advances in semiotics. Bloomington & Indianapolis: 1990.
Gugliotto, Lee J. La crisis de la exégesis. El Ministerio Adventista, jul.-ago., p. 3-6, 1996.
LADD, George Eldon. The New Testament and criticism. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1967.
Porter, Stanley E. & Tombs, David (Eds.). Approaches to New Testament study. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1995.
Toussaint, Stanley D. A method of making a New Testament word study. Bibliotheca Sacra, v. 120, n. 477, p. 35-41, jan. 1963.
Unger, Merrill F. The papyri and the critical evaluation of the New Testament. Bibliotheca Sacra, v. 117, n. 465, p. 19-22, jan. 1960.
Utzschneider, Helmut. Text — reader — author: towards a theory of exegesis: some European viewpoints. Comunicação apresentada no Colóquio "Theorie der Exegese" em Augustana-Hochschule, Neuendettelsau (Alemanha), em 9 de março de 1996.
A crítica linguística na interpretação da Bíblia
Acredito ter sido Mark Twain quem disse que certa vez um homem segurou um gato pelo rabo e aprendeu 40% mais acerca de gatos do que ele sabia antes. O que quero dizer é que a prática é o elemento mais importante do aprendizado. E quando falamos do ensino de línguas antigas, o acesso do aluno aos textos é ainda mais importante, pois quando isso acontece o aprendizado se torna efetivo.
É, pois, muito interessante que, nos cursos de grego, o aluno tenha os textos antigos à mão. A interpretação dos mesmos se torna uma aventura e uma necessidade. Na mesa redonda que abriu este seminário eu declarei, com Meillet (1930, p. 185), que o estudo do grego antigo é uma espécie de “álgebra linguística”. A interpretação do dado linguístico é, às vezes, truncada e hermética. É, por isso, que há a necessidade de se recorrer à chamada crítica linguística a fim de que se possa recuperar o significado de uma determinada lexia no recorte sincrônico em que se pretende estudá-la.
Um texto antigo que muito se tem prestado à aplicação de um criticismo linguístico rigoroso é o do Novo Testamento (doravante, NT). Ladd (1967, p. 83) já afirmava que a única maneira de se estabelecer o significado das palavras do NT é através de um criticismo linguístico científico.
Em qualquer situação da vida, há riscos de que não alcancemos a compreensão exata de um determinado evento. Mas esses riscos são muito maiores quando estamos separados do referido evento por milhares de anos. A própria mensagem do Cristianismo não foi compreendida com exatidão em muitos casos - o ápice daquela mensagem ocorreu na cova mais profunda da tragédia humana: uma crucifixão. Historicamente, a morte de Jesus foi feia, brutal, sangrenta, um espetáculo revoltante. Naquele momento, no entanto, ela não foi compreendida como algo incomum a não ser por dois homens: um ladrão e um soldado. Contudo, mesmo para eles, o mais impressionante não era a morte em si, mas a conduta de Jesus em face das circunstâncias.
Por isso, pode-se dizer que sem palavras para explicar o significado de um evento, sua compreensão é incompleta. É necessário um kerygma através do qual se possa dar aos homens uma interpretação mais acurada de um dado evento.
O criticismo linguístico nos tem provido elementos importantes para a determinação mais precisa do significado das palavras do NT. Adolf Deissmann, por exemplo, comprovou que o grego do NT era a língua comum, coloquial e não literária daquela época: a coiné. Como resultado de sua descoberta, houve uma proliferação de traduções do NT em línguas modernas, em uma reação contra as versões “clássicas” que privilegiavam a língua literária.
Da mesma forma, até 1886 pensava-se que 767 palavras do NT eram peculiares ao grego bíblico, hoje, como resultado da aplicação do criticismo linguístico, essa lista baixou para 50 e tende a continuar decrescendo.
Além disso, a partir do momento em que a crítica linguística foi aplicada aos estudos neo-testamentários, descobriu-se que o background helênico tem importância comparável ao judaico na semântica do NT. Até então, quando se buscava o significado de um termo do NT era comum que os estudos se voltassem mais para a análise da cultura hebraica. Agora sabe-se que isso não basta: é preciso captar tal significado também na cultura helênica que influenciou sua escrita.
A crítica linguística, quando aplicada à Bíblia, consiste em estudar as línguas bíblicas em seu escopo mais amplo, de modo que o vocabulário, a gramática e o estilo dos escritos bíblicos possam ser compreendidos da maneira mais precisa não apenas pela comparação com outros escritos bíblicos, mas também com outros escritos na mesma língua ou em línguas afins. O grego do NT, por exemplo, é representativo do grego helenístico escrito no séc. I AD e varia da coiné literária de Hebreus, Pedro e Lucas até a língua coloquial de Marcos e Mateus, tendo recebido influências do aramaico e do hebraico.
A crítica linguística tem iluminado o significado de termos obscuros do NT, especialmente dos chamados hapax legomena (aquelas palavras que só ocorrem uma única vez) e mesmo de termos pouco frequentes. Isso aconteceu, por exemplo, com o vocábulo arrhabôn que aparece em Ef. 1:13-14. Até recentes estudos linguísticos imaginava-se que o termo significasse “garantia”: “Tendo nEle crido, fostes selados com o Espírito Santo da promessa, o qual é a garantia da nossa herança.” Depois de algumas descobertas papirológicas, tem-se chegado à conclusão de que o termo era comum na coiné para designar o primeiro pagamento na aquisição de algum bem a crédito, uma espécie de “entrada”. Assim temos uma tradução mais precisa.
A utilização de uma metodologia rigorosa e científica se afigura como uma chave interpretativa principalmente por causa do momento que vive a interpretação bíblica que ora se caracteriza por um caos hermenêutico. A muitivocidade dos escritos bíblicos tem sido tão enfatizada que atualmente qualquer interpretação parece ser possível.
Esse procedimento parece oportuno para conduzir os intérpretes de volta ao texto. Não se quer, com isso, sugerir que a interpretação dos escritos bíblicos possa prescindir das considerações referentes ao autor e ao leitor, mas é imprescindível que não se perca o texto de vista!
Em um recente colóquio acerca da exegese bíblica, o Dr. Utzschneider afirmou que a interpretação do escritos bíblicos se encontra mergulhada em uma crise tríplice:
1o. falta de consenso e uma certa predisposição contrária à teorização;
2o. alternativas inadequadas e um excesso de teorização;
3o. falta de aceitação fora dos meios acadêmicos.
Criticismo Histórico | Crítica Canônica | Novo Criticismo | Crítica da Resposta | |
Ênfase: AUTOR | Ênfase: AUTOR (Sander) | Ênfase: TEXTO (Childs) | Ênfase: TEXTO | Ênfase: LEITOR |
Abordagem: Diacrônica | Abordagem: Diacrônica | Abordagem: Sincrônica | Abordagem: Sincrônica | Abordagem: Sincrônica |
Metodologia: Histórica | Metodologia: Histórica | Metodologia: Literária | Metodologia: Literária | Metodologia: Literária |
Modalidades: Crítica das fontes Crítica da forma Crítica da redação Midrash comparativo | cânon como tradição dinâmica (hermenêutica centrada no processo) | cânon como texto estático (hermenêutica centrada no produto) | Modalidades: Crítica da narrativa Formalismo Estruturalismo Pós-Estruturalismo Deconstrucionismo | Modalidades: Crítica da reação Crítica feminista Crítica sociológica Teologia da Libertação Crítica psicanalítica |
Pode-se dizer que a exegese bíblica vê muito bem com um olho (o histórico), mas é consideravelmente cega do outro (o estético). Esse caos hermenêutico resulta de, pelo menos, duas dificuldades:
1a. a falta de harmonização dos elementos da chamada “tricotomia das intenções”: intentio auctoris, intentio operis e intentio lectoris (isso numa época em que Umberto Eco defende a interação dos três elementos: autor, texto e leitor!);
2a. a constante diástase das abordagens sincrônica e diacrônica.
Comunicação apresentada por Milton L. Torres durante o II Seminário de Linguística Aplicada, realizado no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, em 1997.
Black, David Alan & Dockery, David S. (Eds.). New Testament criticism and interpretation. Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 1991.
DiPuccio, William. Hermeneutics, exegesis, and the rule of faith: an ancient key to a modern question. Premise, v. 2, n. 9, 19 out., 1995.
ECO, Umberto. The limits of interpretation: advances in semiotics. Bloomington & Indianapolis: 1990.
Gugliotto, Lee J. La crisis de la exégesis. El Ministerio Adventista, jul.-ago., p. 3-6, 1996.
LADD, George Eldon. The New Testament and criticism. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1967.
Porter, Stanley E. & Tombs, David (Eds.). Approaches to New Testament study. Sheffield: Sheffield Academic Press, 1995.
Toussaint, Stanley D. A method of making a New Testament word study. Bibliotheca Sacra, v. 120, n. 477, p. 35-41, jan. 1963.
Unger, Merrill F. The papyri and the critical evaluation of the New Testament. Bibliotheca Sacra, v. 117, n. 465, p. 19-22, jan. 1960.
Utzschneider, Helmut. Text — reader — author: towards a theory of exegesis: some European viewpoints. Comunicação apresentada no Colóquio "Theorie der Exegese" em Augustana-Hochschule, Neuendettelsau (Alemanha), em 9 de março de 1996.
A crítica linguística na interpretação da Bíblia
Eduardo- Mensagens : 5997
Idade : 54
Inscrição : 08/05/2010
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