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A importância das doutrinas na vida devocional Jesus-teaching

Há um falso dilema que insiste em assolar a vida prática dos seguidores de Cristo. Trata-se da ideia segundo a qual devemos ler as Escrituras somente de forma devocional. Argumenta-se sobre o familiarizar-se com a pessoa de Jesus, indo à Bíblia não em busca de confirmações doutrinárias ou mesmo de estudo cuidadoso. Bastaria conhecer o que a Bíblia diz acerca de Jesus. É comum ouvir que ler o texto sagrado dessa perspectiva seja o equivalente ou até o sinônimo de devoção pessoal.

Apesar da ampla aceitação do conceito, algumas perguntas requerem atenção. A abordagem não estaria pressupondo uma dicotomia entre Jesus e Sua doutrina? Se for o caso, a dicotomia pode ser suportada por evidências bíblica? Fazer as pessoas escolherem entre Jesus ou Sua doutrina não constituiria contradição insuperável, tendo em vista que o próprio Jesus afirmou que o reconhecimento de Sua condição messiânica dependia de análise de Sua doutrina? Além do mais, tudo o que se conhece a respeito de Jesus – Seu nascimento virginal, vida vitoriosa sobre a tentação, as profecias vétero-testamentárias cumpridas por Ele, Seu sacrifício redentivo, entre outros – não faz parte do corpo de doutrinas bíblicas? Portanto, Jesus separado das doutrinas nem poderia ser compreendido da forma como os cristãos o fazem; antes, seria mera figura simbólica, cuja identidade permaneceria no campo da especulação.
Talvez a ênfase no Jesus contraposto às doutrinas tenha raiz em, ao menos, dois fatores, um relacionado à mentalidade da própria igreja e outro atrelado ao contexto cultura, o qual acaba exercendo influência sobre os cristãos.
No que tange à mentalidade cristã, existe uma reação ao legalismo que marcou a tradição protestante no século XVIII e deixou resquícios entre as denominações que diretamente descenderam da Reforma. A racionalidade dos primeiros reformadores desembocou em uma religião formal para, cerca de um século depois, ceder espaço à esterilidade proporcionada pelo Racionalismo cristão do pós-iluminismo. Em reação a esse perfil de religiosidade vazia, tivemos o momento pietista, que tentava retomar a simplicidade da fé cristã, mas que, infelizmente, caminhou para outro extremo.
No século XX, ao passo que o cristianismo tradicional se viu em guerra contra ideologias ateístas (marxismo, darwinismo e existencialismo, para mencionarmos algumas), além de viver em constante conflito com o liberalismo teológico, testemunhamos a ascensão de uma espiritualidade cristã carregada de espontaneidade, anti-intelectuaista e comprometido com uma agenda sócio-política bem definida.
Na teologia, a experiência da salvação pessoal ocupou o primeiro plano. Toda uma subcultura cristã, alimentada sobretudo por hinos e pregações, se erigiu em torno da salvação, obliterando outras doutrinas do cristianismo. Não à toa, certo segmento do evangelicalismo é conhecido como os "nascidos de novo".
Parece que a ênfase em uma compreensão reducionista do processo de salvação Se constituiu um dos fatores que explicam o antinomismo da pregação evangélica contemporânea. Sob influxo do existencialismo cristão de kierkegaard, o evangelicalismo do pós-guerra apresentou a mensagem bíblica como se fosse constituída de um relacionamento com o Outro, sem necessidade de buscar qualquer base para esse relacionamento, ou sem a intermediação das Escrituras. A Bíblia até poderia ser o ponto inicial para se relacionar com Deus, mas não a mensagem segura, a revelação substancial de Sua mensagem.
Nessa nova configuração, as doutrinas perderam sua relevância dentro da espiritualidade cristã. A efervescência provocada por cultos espetaculares, nos quais o emocionalismo é o alvo pretendido, dispensa o estudo objetivo da bíblia. A mensagem dos púlpitos se encontra atrelada a tendências, necessidades familiares ou demandas motivacionais, ganhando um sentido místico, por vezes até perdendo características propriamente cristãs.
Se o entendimento parcial da salvação solapou a ênfase doutrinária, não se pode ignorar a influência do pensamento pós-moderno para a polarização entre Jesus e Suas doutrinas.
Como reação à Modernidade, e seu espírito de ordem, a pós-modernidade se opõe a toda hierarquização de ideologias segundo sua racionalidade. A espiritualidade passa a contar com maior espontaneidade, ao mesmo tempo em que o sincretismo flui com maior naturalidade e frequência.
Posturas rígidas e dogmáticas não são mais vistas como necessárias para alcançar um ideal pré-estabelecido, o qual seja fixo. Não existem coisas como alvos inamovíveis ou verdades universais que os justifiquem. Tudo agora são descobertas experimentais que dão sentido a uma busca que ninguém pode dizer com exatidão para onde conduzirá. Se no passado erros doutrinários eram evitados, hoje eles são fundamentais no processo de aprendizagem. E, é claro, todo erro é apenas questão de perspectiva ou mesmo propicia descobertas que levem à mudança de perspectiva.
Um cristianismo sob influência pós-moderna substitui as doutrinas típicas por valores relevantes à época, tais quais tolerância, amor, justiça, luta contra o preconceito, etc. Esses próprios valores são redefinidos, por sua vez, tornando-se impossível fazer um paralelo perfeito com a doutrina cristã, a qual acaba sendo, também por essa razão, encarada de maneira tão negativa, quando não confundida com premissas pós-modernas. Dentro desse quadro, estaria o cristianismo fadado a perder sua identidade peculiar?
Levantamos a princípio a questão do entendimento sobre a vida devocional. O problema com o Jesus do coração é que ele tem pouco efeito sobre a mente. Uma vida devocional apaixonada não pode significar meramente uma leitura superficial das Escrituras, que desconsidere contextos e implicações mais amplos sob pretexto de se aproximar da pessoa de Cristo. O Senhor Jesus recapitulou o sentido dos primeiros mandamentos do decálogo ao afirmar que devemos amar o senhor de toda a nossa alma, com todo o nosso entendimento, com todas as forças e com todo o coração. Nosso amor a Deus não será completo se omitir alguma área significativa da vida.
A opção "Jesus ou as doutrinas" deve ser preterida por um modelo mais amplo, o qual inclua Jesus com a doutrina. Seguindo esse raciocínio, teríamos, ao menos, três alternativas.
A primeira seria centralizar a devoção nas doutrinas e por meio delas tentar caminhar até Cristo. As doutrinas serviriam como via de acesso ao Salvador. Um dos problemas com tal proposta é que ao destacar dessa maneira a doutrina corre-se o risco de torná-la um fim em si mesma. A porta estaria aberta para o legalismo e a esterilidade espiritual. Na época do primeiro advento, as pessoas mais apaixonadas pelas doutrinas resolveram crucificar o Messias!
Uma segunda alternativa seria apresentar alterada e colaborativamente Jesus e a doutrina. A ênfase seria dupla, sendo que nem o Mestre, nem sua mensagem deixariam de receber endosso. A dificuldade com essa abordagem se acha na má compreensão que ela originaria. Ao apresentar Jesus e Sua doutrina lado a lado, não se correria o risco de sugerir que ambos possuam igual importância? Talvez isso pudesse levar futuramente à compreensão de que as doutrinas sejam salvíficas, de modo bastante similar ao conceito católico de sacramento.
Finalmente, o terceiro modelo consiste em um relacionamento dinâmico entre Cristo e Sua doutrina, estabelecendo o Salvador no centro dessa relação. Jesus seria mais do que o centro – nele, teríamos o próprio ápex, o ponto para o qual todas as doutrinas convergem. Logo, a mensagem bíblica não seria um adorno fútil, porém parte da revelação que Deus fez de Si mesmo, a qual alcançou seu ápice em Jesus.
Ao que parece, embora admita a dificuldade para confirmá-lo empiricamente, os adventista se sedimentaram após o grande desapontamento porque sua forma de estudo da bíblia coincidia com a terceira proposta apresentada acima. Ao se darem conta de que Jesus não voltara à Terra em outubro de 1844, os pioneiros do movimento volveram-se à Palavra de Deus procurando compreender as profecias concernentes ao retorno de Jesus, a quem amavam e por quem haviam abandonado tudo.
O processo que fomentou a identidade do movimento perdurou por algumas décadas, nas quais a mesma avidez por se interar das verdades bíblicas conduzia os adventistas a estudá-la aplicadamente. Não havia concorrência ou conflito entre Cristo e Sua doutrina. Toda descoberta ajudava a erigir não apenas um sistema doutrinário, mas regatava aspectos essenciais da obra de Cristo no santuário, lançando luz sobre sua pessoa. Quanto melhor compreendiam a doutrina, mais amavam Jesus e ansiavam por vê-Lo.
Após os anos iniciais, o adventismo também enfrentou um período de legalismo, no qual a postura polêmica (em vista das controvérsias com outros cristãos) tornava o estudo e apresentação de doutrinas caracteristicamente adventistas um exercício racional, ignorando como cada doutrina contribuía para aproximar de Jesus. Atualmente, os adventistas têm vivido sob o paradigma da leitura devocional da Bíblia, entendido como um encontro místico com Jesus e uma aplicação direta do texto na vida do leitor, comumente ignorando os detalhes históricos e sem preocupação em manter uma hermenêutica sólida (em geral, o método alegórico parece ser o preferido pelas pessoas, ainda que inconscientemente).
Enquanto persistir essa abordagem popular e pouca cuidadosa de ler a Bíblia, menos se poderá conhecer objetivamente o plano de Deus, conforme Ele o revelou. E quem poderá calcular o impacto disso a longo prazo sobre a identidade adventista em tantos indivíduos da nova geração da igreja?



Postado por douglas reis às aqui comentários
A IMPORTÂNCIA DAS DOUTRINAS NA VIDA DEVOCIONAL
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