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[Kuhn] Estrutura das Revoluções Científicas: Ciência, Fato, Paradigma e Cooporativismo Científico
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15072010
[Kuhn] Estrutura das Revoluções Científicas: Ciência, Fato, Paradigma e Cooporativismo Científico
A RESPOSTA Á CRISE
"Suponhamos que as crises são uma pré-condição necessária para a emergência de novas teorias e perguntemos então como os cientistas respondem à sua existência. Parte da resposta, tão óbvio como importante, pode ser descoberta observando-se primeiramente o que os cientistas jamais fazem, mesmo quando se defrontam com anomalias prolongadas e graves. Embora possam começar a perder sua fé e a considerar outras alternativas, não renunciam ao paradigma que os conduziu à crise. Por outra: não tratam as anomalias como contra-exemplos do paradigma, embora, segundo o vocabulário da filosofia da ciência, estas sejam precisamente isso. Em parte, essa nossa generalização é um fato histórico, baseada em exemplos como os mencionados anteriormente e os que indicaremos mais adiante. Isso já sugere o que o nosso exame da rejeição de um paradigma revelará de uma maneira mais clara e completa: uma teoria científica, após ter atingido o status de paradigma, somente é considerada inválida quando existe uma alternativa disponível para substituí-la. Nenhum processo descoberto até agora pelo estudo histórico do desenvolvimento científico assemelha-se ao estereótipo metodológico da falsificação por meio da comparação direta com a natureza. Essa observação não significa que os cientistas não rejeitem teorias científicas ou que a experiência e a experimentação não sejam essenciais ao processo de rejeição, mas que - e este será um ponto central - o juízo que leva os cientistas a rejeitarem uma teoria previamente aceita baseia-se sempre em algo mais do que essa comparação da teoria com o mundo. Decidir rejeitar um paradigma é sempre decidir simultaneamente aceitar outro e o juízo que conduz a essa decisão envolve a comparação de ambos os paradigmas com a natureza, bem como sua comparação mútua.
A par disso, existe uma segunda razão para duvidar de que os cientistas rejeitem paradigmas simplesmente porque se defrontam com anomalias ou contra-exemplos. Ao apresentar essa segunda razão, delinearei outra das principais teses deste ensaio. As razões para a dúvida esboçadas acima eram puramente fatuais; isto é, eram, elas mesmas, contra-exemplos de uma teoria epistemológica atualmente admitida. Como tal, se meu argumento é correto, tais razões podem, quando muito, ajudar a formação de uma crise ou, mais exatamente, reforçar alguma já existente. Por si mesmas não podem e não irão falsificar essa teoria filosófica, pois os defensores desta farão o mesmo que os cientistas fazem quando confrontados com anomalias: conceberão numerosas articulações e modificações ad hoc de sua teoria, a fim de eliminar qualquer conflito aparente. Muitas das modificações e especificações relevantes já estão presentes na literatura. Portanto, se esses contra-exemplos epistemológicos constituem algo mais do que uma fonte de irritação de menor importância, será porque ajudam a admitir a emergência de uma nova e diferente análise da ciência, no interior da qual já não são uma fonte de problemas. Além disso, se é possível aplicar aqui um padrão típico (que será observado mais adiante nas revoluções científicas), tais anomalias não mais parecerão ser simples fatos. Ao invés disso, no interior de uma nova teoria do conhecimento científico, poderão assemelhar-se a tautologias, enunciados de situações que de outro modo não seriam concebíveis" (p. 107, 108).
Fonte: "A Estrutura das Revoluções Científicas", de Thomas S. Kuhn. Editora Perspectiva. São Paulo, 2006.
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"Na Estrutura, Kuhn afirm a que a ciência normal é a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações do passado. Tais realizações são reconhecidas durante certo período de tempo por uma comunidade científica e fornecem os fundamentos para sua prática científica atual. Os manuais científicos, elementares e avançados, apresentam estes fundamentos através do corpo da teoria aceita, da ilustração de muitas de suas aplicações bem sucedidas e comparam essas aplicações com as observações e experiências exemplares. Antes do século XIX, quando os manuais se tornaram populares, os clássicos da ciência realizavam uma função semelhante, como, por exemplo, os Principia e a Optica de Newton (cf. Kuhn, 2006a, p. 29-30). Segundo Kuhn, essas obras partilhavam duas características em comum: suas realizações foram suficientemente sem precedentes, atraindo grupos de partidários, e tais realizações eram suficientemente abertas, permitindo a resolução posterior de problemas científicos (cf. Kuhn, 2006a, p. 30).
As realizações científicas que compartilham essas duas características são, a partir deste ponto da Estrutura, denominadas “paradigmas”, termo que est profundamente relacionado com a ciência normal. Os paradigmas, segundo Kuhn, são padrões aceitos na prática científica real de uma comunidade científica, inclusive as leis, as teorias, a aplicação e a instrumentação, sendo, portanto, o modelo para as tradições coerentes e específicas de pesquisa. São exemplos de paradigmas as tradições de pesquisa científica que costumam ser referidas pelos historiadores da ciência com denominações tais como “astronomia ptolomaica” ou “copernicana”, “din mica aristot lica” ou “ newtoniana”, “óptica corpuscular” ou “ ondulatória”. Por tratar de elementos tão fundamentais da prática científica, é a formação e o treino recebidos segundo o paradigma de determinada época que autoriza o estudante a fazer parte da comunidade científica específica, reunindo -se a outros cientistas que também aprenderam as bases da sua atividade a partir dos mesmos modelos. Por esse motivo, os cientistas estão comprometidos com as mesmas regras e padr es de pr tica científica: “Esse comprometimento e o consenso aparente que produz são pré-requisitos para a ciência normal, isto é, para a gênese e a continuação de uma tradi ão de pesquisa determinada” ( cf. Kuhn, 2006a, p. 30).Kuhn, antes de entrar em uma discussão mais abstrata sobre os paradigmas, o que será desenvolvido no capítulo 4 da Estrutura, aborda alguns exemplos de ciência normal, descrevendo paradigmas em atividade. O primeiro exemplo que aborda é o da óptica física:
Os manuais atuais de física ensinam ao estudante que a luz é composta de fótons, isto é, entidades quântico-mecânicas que exibem algumas características de ondas e outras de partículas. A pesquisa é realizada de acordo com esse ensinamento, ou melhor, de acordo com as caracterizações matemáticas mais elaboradas a partir das quais é derivada esta verbalização usual. Contudo, essa caracterização da luz mal tem meio século. Antes de ter sido desenvolvida por Planck, Einstein e outros no começo do século XX, os textos de física ensinavam que a luz era um movimento ondulatório transversal, concepção que em última análise derivava dos escritos ópticos de Young e Fresnel, publicados no início do século XIX. Além disso, a teoria ondulatória não foi a primeira das concepções a ser aceita pelos praticantes da ciência óptica. Durante o século XVIII, o paradigma para este campo de estudos foi proporcionado pela Óptica de Newton, a qual ensinava que a luz era composta de corpúsculos de matéria. Naquela época os físicos procuravam provas da pressão exercida pelas partículas de luz ao colidir com os corpos sólidos, algo que não foi feito pelos primeiros teóricos da concepção ondulatória (Kuhn, 2006a, p. 31-2).
Uma análise historiográfica kuhniana destes eventos históricos da óptica física apontariam, como Kuhn destacou, que essas mudanças no paradigma da óptica são revoluções científicas e que este é o padrão usual de desenvolvimento de uma ciência amadurecida. Voltaremos a falar do conceito de ciência madura mais adiante, ainda neste item. O que segue como conclusão da análise de Kuhn é que este não foi o padrão usual de desenvolvim ento deste campo da física no período anterior à óptica newtoniana e é este contraste que Kuhn quer explorar:
Nenhum período entre a Antiguidade remota e o fim do século XVII exibiu uma única concepção da natureza da luz que fosse geralmente aceita. Em vez disso havia um bom número de escolas e subescolas em competição, a maioria das quais esposava uma ou outra variante das teorias de Epicuro, Aristóteles ou Platão. Um grupo considerava a luz como sendo composta de partículas que emanavam dos corpos materiais; para outro, era a modificação do meio que intervinha entre o corpo e o meio; um outro ainda explicava a luz em termos de uma interação do meio com uma emanação do olho; e haviam outras combinações e modificações além dessas. Cada uma das escolas retirava forças de sua relação com alguma metafísica determinada. Cada uma delas enfatizava, como observações paradigmáticas, o conjunto particular que sua própria teoria podia explicar melhor (Kuhn, 2006a, p. 32).
Segundo uma perspectiva que leve em consideração os paradigmas atuais como científicos, é possível afirmar , apoiando-nos no mesmo exem plo da óptica física, que apenas a teoria que define a luz como uma entidade quântico-mecânica estaria correta e, portanto, somente ela pode ser considerada verdadeiramente como ciência. Por consequência, as contribuições anteriores, sejam àquelas oriundas das escolas e subescolas da Antiguidade ou mesmo a óptica newtoniana, seriam teorias superadas, não devendo ser objeto da consideração do cientista que, por exemplo, paute sua atividade na mecânica quântica. Porém, analisando este exemplo da óptica física à luz da nova historiografia da ciência proposta por Kuhn, consideramos, por dois motivos principais, este tipo de interpretação de que apenas a teoria quântico-mecânica é ciência como sendo demasiado distante do que de fato ocorreu na história da óptica física. Em primeiro lugar, Kuhn afirma que as contribuições anteriores à óptica quântico-mecânica de Plank e Einstein, ou seja, a corpuscular de Newton, apresentada no século XVIII, e a ondulatória de Young e Fresnel do século XIX, são científicas, pois tornaram-se modelos paradigmáticos para os pesquisadores da época em que foram apresentadas, apesar de não serem mais os guias para a prática científica atual. Em segundo lugar, as escolas da Antiguidade não formaram um acordo entre as diversas perspectivas teóricas sobre a natureza da luz defendidas, o que, na nova historiografia da ciência proposta por Kuhn, é elemento necessário para a identificação de que entre eles ocorria uma prática científica. Portanto, no caso das escolas e subescolas da Antiguidade, cada qual estava comprometida, afirma Kuhn, com certa definição da luz, com uma metafísica determinada e, além disso, utilizavam conjuntos particulares de observações paradigmáticas. Esta diferença de tratamento entre contribuições teórico-científicas anteriores e posteriores à óptica newtoniana requerem a explicação de outros aspectos da filosofia da ciência kuhniana, especialmente no que concerne à elucidação do significado dos períodos pré-paradigmático e paradigmático em que uma dada ciência pode se encontrar ao longo do seu desenvolvimento, bem como sobre o significado atribuído por Kuhn à ciência madura.
Kuhn caracteriza o período pré-paradigmático e o paradigmático de modo comparativo, pois, em virtude do desenvolvimento histórico a que este autor supõe estarem submetidas às ciências, cabe ao historiador, entre outras atividades, a de identificar o momento em que surge uma nova ciência, o que se dá justamente na passagem do período pré-paradigmático ao paradigmático com a aquisição do primeiro paradigma por um determinado campo científico. Desta maneira, tendo como marco o primeiro paradigma, a ciência que o conquistou transita para o período paradigmático de desenvolvimento. Mas, anterior a esta fase, encontra-se outra, o chamado período pré-paradigmático. Este período é caracterizado por Kuhn pela competição entre diferentes escolas, cada qual definindo e justificando os fundamentos da atividade científica a cada novo passo que queiram dar em sua pesquisa."
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Fonte:
Débora de Sá Ribeiro Aymoré: “O modelo de historiografia da ciência kuhniana: da obra A estrutura das revoluções científicas aos ensaios tardios”. (Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Filosofia sob a orientação do Prof. Dr. Maurício de Carvalho Ramos. São Paulo, 2010.
Kunh e a instauração de um novo paradigma
"A partir do momento em que pode ser detectado o enfraquecimento do paradigma que, juntamente com isso, a confiança nesse mesmo paradigma não é mais como antes. Daí amadurece as condições para a revolução científica. No período em que ocorre a transição do paradigma em crise para um novo, o modo cumulativo de produção de conhecimento desaparece.
Exemplo da passagem a novo paradigma é a transição da astronomia ptolomaica à copernicana. Como uma reorientação gestáltico: quando abraça novo paradigma, por exemplo, a comunidade científica manipula o mesmo número de dados que antes, porém, inserindo-se em relações diferentes de antes. Esta migração dum paradigma a outro é o que constitui uma revolução científica:
O progresso através de revoluções é a alternativa de Kuhn para o progresso cumulativo característico dos relatos indutivistas da ciência. De acordo com este continuamente à medida que observações mais numerosas e mais variadas são feitas, possibilitando a formação de novos conceitos, o refinamento de velhos conceitos e a descoberta de novas relações lícitas entre eles. (CHALMERS, Ob. Cit. p. 135)
Ocorre, nessa fase, a reconstrução da área de estudos a partir da adoção de novos princípios epistemológicos e da assunção de outros compromissos antológicos. De modo que terminada a transição os cientistas terão modificado amplamente a concepção que, até então, se tinham de sua disciplina. Modificando, assim, sua visão de natureza:
Em dissonância com a ótica dominante, a maioria das novas descobertas e teorias nas ciências não são meras adições ao estoque de conhecimento científico existente. Para assimilá-las, o cientista deve normalmente rearrumar o equipamento intelectual e manipulativo no qual anteriormente confiou, descartando alguns elementos de sua crença e prática anteriores, descobrindo novos significados e novas relações entre muito outros. Em razão de o velho dever ser reavaliado e reordenado quando se dá a assimilação do novo, descoberta e invenção nas ciências são quase sempre intrinsecamente revolucionárias. ( KUHN apud OLIVA, ......, p. 93-94)
Segundo Kuhn, os grandes progressos em ciência representam a manipulação basicamente do mesmo conjunto de dados antes considerados. Essas reviravoltas de perspectivas se assemelham a uma reversão gestáltica exemplificável pelo famoso caso coelho, ora visto como pato (cf. OLIVA, 1997, p.163-164). Por longo período só vê, só mesmo, o pato. É preciso que reavalie seus princípios e pressupostos para se habilitar a ver coelho.
É óbvio que, numa perspectiva Kuhniana, o normal da ciência só pode ser assim caracterizado por oposição a um momento revolucionário esporádico e vice-versa. Kuhn não prevê a possibilidade de se propor uma nova teoria sem que a já aceita tenha passado pela crise, capaz de minar seus princípios bases de sustentação. É pela crise que a emergência de uma nova teoria que rompe com uma tradição irá introduzir uma nova dirigida por diferentes regras:
(...) enfraquece as regras de resolução dos quebra-cabeças da ciência normal, de tal modoque acaba permitindo a emergência de um novo paradigma. Creio que existem apenas duas alternativas:ou bem as teorias científicas jamais se defrontam com um contra-exemplo, ou bem essas teorias se defrontam constantemente com contra-exemplos. ( KUHN, Op. Cit., 110-111)
O que muda não é só o paradigma, mas também a ampla redefinição de critérios epistémicos. Partindo dai, o cientista mostra um tipo de reflexão bastante parecida com a filosófica. Mostrando, ainda, a sua preocupação com a problemática dos pressupostos e fundamentos no momento em que se fazia a ciência normal.
Para explicitar melhor a origem das revoluções científicas, Kuhn utiliza-se das anomalias com as revoluções políticas. Estas se iniciam com o intuito de que as instituições existentes deixaram de aparecerem capazes de tomar frente dos problemas que afloram a ordem social. Já a revolução científica é o paradigma que é classificado como inadequado para explicar algum aspecto da natureza:
As revoluções políticas iniciam-se com um sentimento crescente, com freqüência restrita a um segmento da comunidade política, de que as instituições existentes deixaram de responder adequadamente aos problemas postos por um meio que ajudaram em parte a criar. De forma muito semelhante, as revoluções científicas iniciam-se com um sentimento crescente, também seguidamente restrito a uma pequena subdivisão da comunidade científica, de que o paradigma existente deixou de funcionar adequadamente na exploração de um aspecto da natureza, cuja exploração fora anteriormente dirigida pelo paradigma. (Ibidem, p. 126)
Afirma, o próprio Kuhn, que as revoluções políticas querem contrariar a funcionalidade imposta às instituições predominantes. Por razões dos dissentimentos entre facções em luta, as partes envolvidas neste momento revolucionário devem recorrer às técnicas de persuasão de massa. No caso da revolução científica, a existência de uma matriz disciplinar deixa de se fazer presente e, com isso, as chances em haver arbitragem com base em estritas razões ou justificações se tornam impossíveis. É, de fato, uma luta cujo desfecho determinará o modo de ver – a visão de mundo – vencedor. Uma vez que a forma de ver esta, estritamente, vinculada a um modo de viver a mudança de paradigma é, em suma, uma nova forma de vida (cf. OLIVA, Ob. Cit., p. 95)
É sumamente importante expor que no momento em que a tradição epistemológica se esforça para demonstrar que as ciências sociais conquistam seu caráter científico acaso se empenharem na imitação de métodos realizados pelos naturais, Kuhn se ocupa no sentido de elucidar a racionalidade científica em geral. Poderia, a esta altura, dar impressão de que é do objetivo de Kuhn querer corrigir os erros do velho naturalismo. A possibilidade de mostrar o percurso científico numa determinada ciência se torna algo muito problemático. Tal tarefa se torna mais difícil ainda o domínio não possui uma cientificidade estabelecida pelo próprio consenso que a rege.
No sistema Kuhniano, o velho naturalismo não só é invertido como também entra em choque com a tradição quando retira dos requisitos lógico-empiricos o papel determinante de avaliadores da veracidade das teorizações. Tanto o naturalismo quanto a epistemologia são atacadas por categorias pertencentes a esfera do político-sociológico, com o objetivo de solucionar a diacronia dos processos históricos de produção de conhecimento científico. A força dos contra-exemplos é tomada à argumentação persuasiva, a universalidade intersubjetiva torna-se audadosa das maneiras funcionais de (re) produção de consenso nas comunidades científicas:
Na escolha de um paradigma – como nas revoluções políticas – não existe critério superior ao consentimento da comunidade relevante. Para descobrir como as revoluções científicas são produzidas, teremos, portanto, que examinar não apenas o impacto da natureza e da lógica, mas igualmente as técnicas de argumentação persuasiva que são eficazes no interior dos grupos muito especiais que constituem a comunidade dos cientistas. (KUHN, Ob. Cit., p. 128)
Por esta razão que se conclui que a utilização de técnicas de argumentação persuasiva aos requisitos lógicos de coerência se mostra de pouca serventia. Faz parte da afirmação Kuhniana de que os argumentos não são individualmente decididos. Não havendo, assim, argumentos puramente lógicos com a capacidade de nomear a superioridade dum paradigma sobre outro(s).
Por ventura, se a tradição epistemológica, esboçada por Kuhn, estiver com a razão, então a metaciência de Kuhn poderá ser classificado como digna descrição da ciência. Não uma reconstrução da racionalidade científica que elucida na enunciação de algum critério de decisão epistémica. Afinal, é o intuito de Kuhn elucidar que seu relato constitui uma teoria da ciência, pelo fato de oferecer uma explicação da função de seus vários componentes (cf. CHALMERS, Ob, Cit., p. 134). Tanto a ciência normal quanto às revoluções são funções necessárias, uma vez que a própria ciência deverá incluir tais características que servem para desempenhar as mesmas funções. Quais são estas funções, segundo o próprio Kuhn?
O momento em que esta vigorando um paradigma na ciência normal é dado ao cientista o privilégio de desenvolver os detalhes esotéricos contidos em uma teoria. Sendo eles, os cientistas, capazes de desenvolverem trabalhos teóricos e experimentais rigorosos, bastante precisos para levar a relação existente entre o paradigma e a natureza a um grau mais alto. É pela confiança no sucesso do paradigma que os cientistas se tornam capazes de tentar resolver os enigmas apresentados no interior de um paradigma. Desta forma se faz necessário que no percurso da ciência normal os cientistas não se empenham em serem críticos, que sejam não-críticos. Do contrário, nenhum trabalho poderia ser realizado em profundidade:
Isso já sugere o que o nosso exame de rejeição de um paradigma revelará de uma maneira mais clara e completa: uma teoria científica, após ter atingido o status de paradigma, somente é considerada inválida quando existe uma alternativa disponível para substituí-la. (Ibidem, p. 108)
Admitindo que os cientistas perpetuassem permanecer na fase da ciência normal, é o mesmo que dizer que uma determinada ciência ficaria presa em um único paradigma. Havendo, assim, o não progresso dela mesma. Tal ocorrência seria, nos dizeres de Kuhn, um erro. Afinal:
Kuhn insiste que seu relato constitui uma teoria da ciência porque inclui uma explicação da função de seus vários componentes. Segundo Kuhn, a ciência normal e as revoluções servem funções necessárias, de modo que a ciência deve implicar estas características ou algumas outras que serviriam para desempenhar as mesmas funções. (CHALMERS, Ip. Cit., 135)
Podendo até ocorrer de um paradigma apresentar-se como inadequado no que tange com sua relação à natureza. Quando isso ocorre, a mudança de paradigma ganha destaque e se torna importante para o progresso na ciência.
Vale, entretanto, questionar se a passagem de um paradigma a outro implica no progresso, propriamente dito? Aparentemente é uma questão complexa. Por outro lado, no desenvolvimento de algum período da ciência normal o progresso se apresenta como evidente e seguro, ao passo que nos momentos da revolução o percurso é caracterizado pelas discussões sobre as doutrinas fundamentais entram em conflito com a natureza, surgem dúvidas a respeito da possibilidade de perpétua continuação do progresso. Ou seja, no questionamento será adotado ou não um paradigma que se defrontam entre si:
Parte dessa aparência resulta pura e simplesmente da nova perspectiva de enfoque adotada pela escrutínio científico. Uma fonte de mudanças ainda mais importante é a natureza divergente das numerosas soluções parciais que a atenção concentrada tornou disponível. Os primeiros ataques contra o problema não resolvido seguem bem de perto as regras do paradigma, mas, com a contínua resistência, a solução, os ataques envolverão mais e mais algumas articulações menores do paradigma. (KUHN. Ip. Cit., p. 114)
O progresso pelas revoluções é a alternativa que Kuhn opta para o progresso cumulativo característico dos relatos da ciência. Visto que a transição de um paradigma em crise para um novo se torna complexo, na medida de não equivalerem-se a um processo cumulativo. E sim para reformulações de todos os dogmas intrínsecos à “lógica” do paradigma em crise. É, exatamente, uma reconstrução por completo da área de estudo partindo de novos critérios, afim de lidar com os novos fatos e regras estipulando melhores formas de acesso à itens experiências:
A transição de um paradigma em crise para um nodo, do qual pode surgir uma nova tradição de ciência normal, esta longe de ser um processo cumulativo obtido através de uma articulação do velho paradigma. É antes uma reconstrução de área de estudos a partir de novos princípios, reconstrução que altera algumas das generalizações teóricas mais elementares do paradigma, bem como muitos de seus métodos e aplicações. Durante o período de transição haverá uma grande coincidência entre os problemas que podem ser resolvidos pelo antigo paradigma e os que podem ser resolvidos pelo novo. (KUHN, Op. Cit., p. 116)
Do contrário, se houvesse progresso nas ciências cumulativamente, poder-se-ia notar que a cada estado o que fora lógica ou factualmente acrescentado. É óbvia que na instauração de um novo paradigma é demandado uma nova definição de toda a ciência revolucionária. Pelo fato de que ela, o novo paradigma, esteja envolvido em rupturas, descontinuidade em toda a tradição anterior. As intrínsecas diferenças existentes entre paradigmas não se limitam em acréscimos e sim em diferenciações em qualificar os fenômenos de determinada área de estudo. É justamente as que residem o fato em que o processo de passagem de um paradigma para outro ser complicado.
Não existe uma fórmula dotada de ensinar ou mostrar como é feita a implantação de um paradigma e, tampouco, como é consolidada sua hegemonia:
Não há dúvida de que se a ciência progredisse pelo desvendamento crescente de um mesmo conjunto de fenômenos, pela simples descoberta de “mais coisas” ou pela neutralização de erros e ilusões – em suma, consoante um evolucionismo linear caracterizado por conquistas de um mesmo gênero – a competição entre programas de pesquisas seria facilmente arbitrável. Seria mais fácil perseguir um só significado para empírico e ver como inevitavelmente ruinosa a influência da filosofia tácita que se insinua nos processos particulares de pesquisa. ( OLIVA, Op. Cit., p. 123)
Em suma, assim como ocorre na evolução biológica, também na evolução da ciência pode-se encontrar um processo em que é desenvolvida constantemente. A partir, é claro, de estágios primitivos, porém não tendenciosos a nenhuma meta. Isto é a vantagem do número de estratégias tentadas serem multiplicado. Sendo os riscos distribuídos pelas comunidades científicas e aumentados às chances de algum sucesso em longo prazo. “De que outra forma”, pergunta Kuhn, “ poderia o grupo como um todo distribuir as suas apostas?” (LAKATOS e MUSGRAVE apud CLALMERS, op. cit., p. 135).
Fonte: THIAGO MARQUES LOPES: “O PROGRESSO CIENTÍFICO E A NOÇÃO DE PARADIGMA NA CONCEPÇÃO DE THOMAS KUHN”. (Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, como requisito parcial para a conclusão do Curso de Graduação em Filosofia. Orientador: Prof. Mrs. Rodrigo Rodrigues Alvim da Silva). Juiz de Fora, 2008.
Diálogo entre Popper e Kuhn acerca da astrologia
"No artigo Logic of discovery or psycology of research?, de Kuhn, ele compara as suas concepções de ciência com as de Popper e aponta as semelhanças e diferenças que percebe entre os dois pontos de vista. Segundo Kuhn, a semelhança entre os dois critérios de demarcação é apenas nos resultados, pois os processos são muito diferentes, já que trabalham com aspectos distintos do objeto em questão. Assim como Popper, que elaborou o seu critério com base nos casos do marxismo e da psicanálise, Kuhn concorda que ambos são pseudociências, mas afirma que "chegou a essa conclusão por um caminho muito mais seguro e mais direto que o dele". Kuhn considera o seu critério de solução de quebra-cabeças menos equívoco e mais fundamental que o de Popper.
Partindo do princípio de que Popper faz oito referências à astrologia só no seu Conjecturas e refutações, Kuhn também optou por tomá-la como exemplo neste artigo, dada a recorrência do caso da astrologia como exemplo de pseudociência. Segundo Popper, as interpretações dos astrólogos são muito vagas e explicam qualquer coisa, inclusive os falsificadores potenciais125 da teoria astrológica. Para fugir da falsificação, os astrólogos impossibilitaram a testabilidade da astrologia. Só para ilustrar essa mesma linha de pensamento, alguns argumentos de Stephen Hawking:
"A astrologia alega que os eventos na Terra estão relacionados aos movimentos dos planetas no céu. Esta é uma hipótese cientificamente experimentável, ou seria, se os astrólogos se arriscassem e fizessem previsões precisas que pudessem ser testadas."
Kuhn concorda com isso que ele chama de "generalizações" sobre a testabilidade da astrologia e a postura dos astrólogos, mas não acha possível basearse nelas para identificar um critério de demarcação. Seu argumento baseia-se na própria história da astrologia, que registra diversas previsões que falharam. Dessa maneira, para Kuhn, "a astrologia não pode ser excluída das ciências devido à forma com que suas previsões foram elaboradas". Além disso, ele também não aceita a exclusão da astrologia com base nas explicações que os astrólogos oferecem para as falhas. Segundo Kuhn, "não há nada de não científico nas explicações dos astrólogos sobre as falhas". Lembra, inclusive, que argumentos similares são usados hoje em dia para explicar falhas na medicina ou na meteorologia. Entretanto, ele afirma que a astrologia não é uma ciência, mas uma "arte prática", assim como a engenharia e a medicina de um século e meio atrás e a psicanálise hoje em dia.
"Eu acho que a semelhança com uma medicina mais antiga e a psicanálise contemporânea é particularmente próxima. Em cada um desses campos, a teoria compartilhada era adequada apenas para estabelecer a plausibilidade da disciplina e fornecer um fundamento para as várias regras que controlam a prática."
Essas regras práticas, apesar de úteis, não foram suficientes para evitar as falhas recorrentes. Mas ainda assim não faria sentido abandonar essas disciplinas plausíveis, necessárias e relativamente bem-sucedidas porque ainda não se elaborou uma teoria melhor. É justamente nessa ausência de uma teoria melhor, que impede a pesquisa, que Kuhn identifica o problema da pseudocientificidade da astrologia: "embora houvesse regras para aplicar, eles não tinham quebra-cabeças para resolver e, portanto, nenhuma ciência para praticar".
Ao comparar as atividades de astrônomos e astrólogos, Kuhn afirma que, ao contrário dos astrônomos, com suas atividades de medição, cálculo, correção de erro, etc., atividades tipicamente de solução de quebra-cabeças, os astrólogos não teriam tais desafios. Eles explicam a ocorrência de falhas, mas tais falhas não suscitam os quebra-cabeças que caracterizam a pesquisa científica. Dessa maneira, "a astrologia não pôde tornar-se uma ciência, ainda que as estrelas, de fato, controlassem o destino humano".
Ao afirmar que os astrólogos fizeram predições testáveis e reconheceram que essas predições às vezes falharam, Kuhn finaliza sua crítica ao critério de demarcação de Popper, apesar de concordar com a exclusão da astrologia do conjunto das ciências. Para ele, Popper teria se concentrado demais nas revoluções ocasionais da ciência, o que o teria impedido de perceber o real motivo dessa exclusão: "testes não são requisitos para as revoluções por meio das quais a ciência avança, mas isso não é verdade para os quebra-cabeças".
Uma distinção interessante é apresentada por John Watkins. Ele sugere que os astrólogos são, de alguma maneira, cientistas normais, na mais perfeita acepção kuhniana. Eles resolvem quebra-cabeças no nível dos horóscopos individuais, despreocupados com os fundamentos da sua teoria geral, ou paradigma.
Em sua crítica à ciência normal de Kuhn, Watkins refere-se às analogias que o próprio Kuhn faz entre ciência normal e teologia: "Kuhn vê a comunidade científica como análoga a uma comunidade religiosa, e vê a ciência como a religião do cientista". Para corroborar seu argumento, Watkins lembra que, em A estrutura das revoluções científicas, Kuhn fala em iniciação, conversão e fé, e identifica semelhanças entre ciência e teologia."
Fonte: Cristina de Amorim Machado: “Considerações acerca da cientificidade da astrologia à luz das idéias de Popper, Kuhn e Feyerabend”. (Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Filosofia. Orientador: Antonio Augusto Passos Videira). Rio de Janeiro, 2004.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As revoluções científicas, segundo Thomas Kuhn
"De acordo com Kuhn (2003, p. 20), alguns historiadores encontram dificuldades no exercício de suas funções, quando essas são a partir do conceito de desenvolvimento por acumulação. Kuhn afirma que a pesquisa histórica com base nesse conceito torna mais difícil a compreensão do assunto estudado e que talvez a ciência não se desenvolva pela acumulação de descobertas e invenções individuais (2003, p. 21). Assim, de acordo com Kuhn o conhecimento científico não cresce de modo cumulativo e contínuo. Ao contrário, esse crescimento é descontínuo e dá-se por saltos qualitativos, os quais não se podem justificar por critérios filosóficos do conhecimento científico. Esses saltos qualitativos, preconizados por Kuhn, ocorrem nos períodos de desenvolvimento científico, em que são questionados e postos em causa os princípios, as teorias, os conceitos básicos e as metodologias, que até então orientavam toda a investigação e toda a prática científica. Dessa forma, a importância atribuída por Kuhn aos fatores históricos na organização do trabalho científico constitui um rude golpe na imagem da ciência que se foi consolidando desde o século XVIII.
Kuhn não atribuiu o triunfo da ciência ao fato de ela seguir à risca uma metodologia de concordância ou de refutação, mas sim por ser conduzida sob a luz de um paradigma.
Kuhn (2003, p. 13) afirma que: “paradigmas são as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para comunidade de praticantes de uma ciência”.
O paradigma é tão aceito pela comunidade científica que, quando um cientista não chega aos resultados desejados, aceita-se, inicialmente, que o erro é do próprio cientista e não do paradigma. Dito de outra forma: há ciência tão somente onde o paradigma domina.
A vantagem de um paradigma é que ele concentra a pesquisa. Quando não há um paradigma, os investigadores acumulam pilhas diferentes de dados, quase ao acaso, e ficam todos ocupados demais em dar um sentido ao caos e em derrotar as teorias concorrentes para progredir de forma consistente.
Segundo Kuhn, os que trabalham dentro de um paradigma praticam aquilo que ele denomina de ciência normal. Assim ensina Kuhn (2003, p. 29), “ciência normal significa a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas passadas”. Essas realizações são reconhecidas durante algum tempo por alguma comunidade científica específica e, posteriormente, proporcionam os fundamentos para sua atividade.
Uma das características da ciência normal é o acriticismo, isto é, a ausência de questionamento dos princípios do paradigma, o que não ocorreria no período que ele denomina de pré-ciência. Este seria um período que antecede a ciência normal. Nesse período, a ciência desenvolve-se de forma fragmentada, e falta o consenso entre os cientistas que estão trabalhando nas pesquisas. Esse consenso é fundamental para Kuhn. Por exemplo, vários grupos de pesquisadores trabalham sério e individualmente num determinado problema. Porém, cada um dirige suas pesquisas a seu modo, não seguindo um método e, assim, não há acordo metodológico entre eles.
Para Kuhn é indiferente o fato de eles não se entenderem, o que chama a atenção é a constatação dos pesquisadores não terem um critério comum, pois, se os cientistas se reunissem, para reforçar uma pesquisa, com certeza o trabalho seria fortalecido, tornando-se mais produtivo. Já, na ciência normal, o que prevalece é a não-percepção de novos fenômenos e o desinteresse pela invenção de novas teorias.
Kuhn (2003, p. 44) afirma:
A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômeno; na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma freqüentemente nem são vistos. Os cientistas também não estão constantemente procurando inventar novas teorias, freqüentemente mostram-se intolerantes com aquelas inventadas por outros.
A ciência em estágio normal é aquela que vige uma estabilidade de certos princípios, ou seja, em um período em que não se colocam em jogo alguns preceitos, como as teorias que se es tão desenvolvendo satisfatoriamente. Por exemplo, a genética molecular, atualmente, está sendo satisfatória para a resolução de muitos problemas relacionados à hereditariedade. Ora, se a genética molecular está funcionando muito bem, não há motivo, segundo Kuhn, para pesquisadores buscarem novos preceitos, ou seja, mudar o que está sendo aceito, a não ser que haja um substituto melhor.
Então, durante o período da ciência normal, os cientistas fazem suas pesquisas orientados pelos paradigmas aceitos. Parte de seu trabalho resume-se em levantar novos problemas e tentar solucioná-los de modo semelhante àquele encontrado no paradigma ao qual a sociedade adere. Como os problemas estão sendo resolvidos dentro de um paradigma, os cientistas acabam não se interessando por desenvolver outro.
Pode-se dizer que o paradigma é limitado e, com isso, limita concentrar a pesquisa. A desvantagem do paradigma é que, por ele ter a tendência de ser rígido, fechado, novos avanços científicos tornam-se cada vez mais secretos e acessíveis apenas a quem os consegue praticar. Sendo assim, as pesquisas, potencialmente frutíferas, emperram, pois não caminham embasadas em premissas aceitas. Visto dessa forma, o paradigma é um tipo de obstrução, porquanto, se de um lado possibilita descobertas, levando à compreensão de outras coisas, de outro cerceia e ignora completamente outras.
Latour (1998, p.14), por exemplo, utiliza a expressão “caixa preta” para definir os problemas encontrados nas pesquisas científicas. Segundo o autor, não há necessidade de saber o que está contido numa “caixa preta” e sim o que nela entra e o que dela sai.
Atualmente, qualquer máquina ou livro contém o modelo pronto da estrutura do DNA. Assim, o modelo da dupla hélice de Watson e Crick pode ser considerado a “caixa preta” para um pesquisador que queira desenvolver qualquer trabalho com os ácidos nucléicos.
Ele não irá importar-se, seja qual for a posição na qual os fosfatos estarão mais bem localizados, visto que é a partir do modelo definido e aceito do DNA que ele desenvolverá suas pesquisas, situação que foi muito diferente para Watson e Crick, pois, na época, esses pesquisadores encontraram inúmeras dificuldades para chegar à conclusão de que a estrutura do DNA é uma dupla hélice. Lembramos ainda que naquela época outros grupos de pesquisadores estavam tentando desvendar esse mistério.
Alguns pesquisadores como os do grupo de Rosalind Franklin afirmavam que havia uma hélice de três fitas. Quando o químico Pauling revelou uma estrutura do DNA que infr ingia todas as leis conhecidas da Química, Watson e Crick receberam ordens de desistir desse trabalho, por ser considerado infrutuoso e que era para retornarem aos estudos mais sérios. Como podemos perceber, são muitas as dificuldades para se chegar a uma conclusão aceita por uma comunidade científica.
Aos nossos olhos, é fácil abrir qualquer livro e deparar com o modelo da dupla hélice pronta. Porém, em 1953, Watson e Crick tiveram muitas dificuldades para definir a estrutura do DNA. A partir dos dizeres de Latour, podemos concluir que a desvantagem do paradigma está associada ao desenvolvimento da pesquisa, já que, por ser considerado fechado, rígido, o paradigma dificulta a abertura de novos caminhos para a realização de novas descobertas. Assim, os cientistas tornam-se tolhidos, pois a adesão ao paradigma vigente é tão forte que as pesquisas giram somente em torno do paradigma aceito, a não ser que ele não esteja dando conta de resolver todos os problemas existentes nas comunidades científicas.
Diante do exposto, Kuhn (2003, p. 45) assevera:
As áreas investigadas pela ciência normal são certamente minúsculas; ela restringe drasticamente a visão do cientista. Mas essas restrições, nascidas da confiança no paradigma, revelaram-se essenciais para o desenvolvimento da ciência. Ao concentrar a atenção numa faixa de problemas relativamente esotéricos, o paradigma força os cientistas a investigar alguma parcela da natureza com uma profundidade e de uma maneira tão detalhada que de outro modo seria inimaginável.
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É isso!Fonte:
CECÍLIA HELENA VECHIATTO DOS SANTOS: "HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE BIOLOGIA DO ENSINO MÉDIO: ANÁLISE DO CONTEÚDO SOBRE A ORIGEM DA VIDA". (Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em Ensino de Ciências e Educação Matemática, da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre. Orientador: Prof. Dr. Marcos Rodrigues da Silva. UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA. Londrina, 2006.
Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.
Um exemplo de “revolução kuhniana”
"Com a morte, em 1996, do historiador e filósofo da ciência Thomas Kuhn, foram retomados os debates sobre a validade da idéia de revoluções científicas – desenvolvida, sobretudo, por Kuhn para lidar com as ciências físicas – às ciências biológicas (Strohman, 1997; Wilkins, 1996). Em A Estrutura das Revoluções Científicas (Kuhn, 1994), cuja primeira edição foi publicada no ano de 1962, Kuhn argumenta que a ciência compreende duas fases marcadamente diferentes: a ciência normal e a ciência revolucionária. Esta última, de acordo com o autor, envolve mudanças conceituais profundas no corpo do conhecimento científico vigente. São as chamadas “revoluções científicas”.
Durante o período de ciência normal, os cientistas trabalham dentro dos limites prescritos por uma estrutura conceitual – uma teoria-modelo ou uma técnica – que Kuhn denominou de paradigma. Todos os problemas e soluções encontradas devem estar contidos dentro do paradigma adotado. Kuhn classificou esse procedimento como o trabalho de resolução de quebra-cabeças (Alves-Mazzotti & Gewandsznadjer, 1998; Strohman, 1997; Wilkins, 1996; Kuhn. 1994; Olby, 1975). O termo “quebra-cabeças”, na concepção de Kuhn, tem origem na proposição de que durante a fase de desenvolvimento da ciência normal, a não resolução de um problema prescrito pelo paradigma é considerada uma falha do pesquisador e não um problema do paradigma empregado. “Em geral, o projeto cujo resultado não coincide com essa margem estreita de alternativas é considerado apenas uma pesquisa fracassada, fracasso que não se reflete sobre a natureza, mas sobre o cientista.” (Kuhn, 1994, p.58). A adesão ao referido paradigma abre caminho para a prática de uma pesquisa mais detalhada e eficiente. Esse contínuo trabalho dentro da estrutura conceitual conferida pelo paradigma tem o objetivo de fortalecê- lo. Contudo, esse mesmo trabalho tem caráter conservador, ou seja, não tem função de descobrir novidades substantivas. (Alves-Mazzotti & Gewandsznadjer, 1998).
No entanto, a prática continuada da busca de soluções para resolver os quebra-cabeças do paradigma, pode evidenciar as suas fraquezas. No momento em que surjam dados anômalos intratáveis para a estrutura conceitual trabalhada dentro do paradigma, este poderia ser sacrificado para dar lugar a um novo paradigma. Nesse momento, a ciência passaria por uma fase revolucionária. (Kuhn, 1994; Olby, 1975). Geralmente, essas mudanças conceituais não são realizadas por figuras já estabelecidas e acostumadas em resolver os quebra-cabeças propostos pelo paradigma, mas por cientistas mais jovens (Kuhn, 1994; Wilkins, 1996). A nova teoria será aceita pela comunidade se ela também for capaz de resolver uma parte significativa dos problemas já resolvidos pela teoria antiga. A posição de Kuhn é claramente instrumentalista: uma teoria é apenas uma ferramenta para produzir previsões precisas, não tendo qualquer relação com a verdade. Teorias não seriam verdadeiras nem falsas, mas eficientes ou não eficientes (Alves-Mazzotti & Gewandsznadjer, 1998).
Alguns historiadores e cientistas se perguntam se existiriam, nas ciências biológicas, revoluções científicas nos termos propostos por Kuhn (Strohman, 1997; Wilkins, 1996).
A revolução darwiniana com a publicação, em 1859, de a Origem das Espécies; a revolução na biologia molecular com a descoberta da estrutura físico-química da molécula de DNA em 1953, e; a revolução mendeliana de 1900 com a redescoberta de seus trabalhos, são os três exemplos imediatos (Wilkin, 1996). Contudo, segundo Wilkins, nenhum dos três parece encaixar-se perfeitamente no modelo de Kuhn. Neste trabalho, mencionamos apenas as justificativas para o modelo que nos interessa, a saber, a descoberta da estrutura da molécula de DNA.
Em 1953, a descoberta da estrutura da molécula de DNA seria um caso de revolução kuhniana devido ao seu efeito imediato e à sua receptividade dentro da comunidade científica. Rapidamente, e de forma universal, ocorreu uma aceitação geral de que o modelo de Watson e Crick poderia explicar o que era o gene 2 (Wilkins, 1996). No entanto, até então não havia idéias claras sobre a estrutura do gene e de seu modo de ação. E porque não havia paradigma prévio a ser destituído, não teria havido uma disputa entre cientistas proeminentes de algum velho paradigma lutando contra a instituição do novo. (Wilkins, 1996). Dessa forma, como não teria ocorrido nenhuma transição entre um velho e um novo paradigma, isso descaracterizaria a descoberta da estrutura do DNA como uma fase revolucionária da ciência."
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É isso!
Fonte:
GUSTAVO CIRAUDO FRAGA SOLHA: “OS GENES INTERROMPIDOS: INTRODUÇÃO HISTÓRICA AO IMPACTO DA DESCOBERTA DOS ÌNTRONS (1977) NA CONTROVÉRSIA SOBRE A DEFINIÇÃO DE GENE MOLECULAR CLÁSSICO - 1960”. (Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História das Ciências da Saúde, da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: História das Ciências. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Waizbort). CASA DE OSWALDO CRUZ – FIOCRUZ. Rio de Janeiro, 2005.
Nota: O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.
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Thomas Kuhn: O Conceito de Revolução Científica
“Se a história fosse vista como um repositório para algo mais do que anedotas ou cronologias, poderia produzir uma transformação decisiva na imagem de ciência que atualmente nos domina.” (THOMAS KUHN) Norte-americano, Thomas Kuhn nasceu em Cincinnati, Ohio (EUA). Foi professor na Universidade de Princeton; no MIT (Massachusetts Institute of Technology), no período de 1979 a 1991, onde encerrou sua carreira no magistério.
Kuhn é protagonista do que se convencionou chamar de “a nova filosofia da ciência”. Seu trabalho está na esteira de autores aos quais reconhece a antecedência, a saber: as pesquisas históricas de Koyré, Meyerson, Helène Metzger, Anneliese Maier, as inspirações de James B. Conant, os trabalhos de Jean Piaget, de Benjamin Whorf, de Ludwig Fleck, além das análises filosóficas de Quine.
Para Kuhn, o estudo histórico da ciência – que reúne e implica, a um só tempo, a habilidade do historiador e o conhecimento do cientista – é indispensável para se compreender como se desenvolveram as teorias científicas, como também por quê, em alguns momentos da história, certas teorias foram mais bem aceitas em vez de outras e, por isso, justificadas e validadas. Essa postura contraria a idéia de que a filosofia da ciência é, simplesmente, uma reconstrução lógica de teorias científicas.
Apesar de Thomas Kuhn ter, inúmeras vezes, revisto e aprimorado seu pensamento, podemos dizer que suas idéias centram-se no que se poderia chamar de “ciência normal” e de “ciência anormal”.
A ciência normal é aquela que é elaborada por uma comunidade científica e serve de base para os desenvolvimentos subseqüentes. Assim, baseia-se num paradigma (termo grego, empregado por Platão, em vários sentidos: “exemplo”, “amostra”, “cópia”, “padrão”, “modelo”; para melhor significar o sentido de paradigma em Platão, devemos precisar o mesmo como modelo = idéia. O termo também pertence ao vocabulário da gramática, designa um exemplo de construção sobre o qual muitos outros podem ser moldados), do qual derivam regras (sabe-se, no entanto, que para Kuhn, os paradigmas podem orientar a investigação mesmo na ausência de regras). Estabelecido um paradigma, a investigação procede de maneira semelhante à solução de “enigmas”, não sendo postos em dúvida os fundamentos do paradigma.
Descobertas “anomalias” no transcorrer do processo investigatório, o que de fato geralmente ocorre, o pesquisador deixa-as de lado como questões relativamente inoportunas, afim de que sejam melhor analisadas posteriormente. Quando tais anomalias tornam-se excessivas e já não se podem ignorá-las ou explicá-las em termos teóricos “normais” – elas assumem um caráter metafísico e extrapolam os limites científicos da teoria – produz-se, então, uma quebra do paradigma, que será substituído por outro. É no trânsito de um paradigma a outro que a ciência oferece um aspecto “anormal”, pois já não se está somente diante de perplexidades, mas diante de problemas que exigem, para sua solução, uma nova teoria, um novo paradigma.
A mudança de paradigma provoca um “deslocamento” semelhante ao que se observa no campo da percepção quando, de acordo com a Psicologia da Gestalt, se vê uma figura diferente da até então vista. Ora, os mesmos fatos são observados de forma distinta, numa perspectiva diferente, isto é, agora, no âmbito de um novo paradigma. As revoluções científicas consistem nessa crise de fundamentos: são mudanças na visão de mundo < invisíveis > inclusive para os próprios cientistas que as realizam.
As anomalias podem ser interpretadas como falseamento de teorias científicas, mas também podem ser vistas como condições para o surgimento de uma nova teoria. O paradigma pode ser estudado como uma estrutura lógica ou como uma série de pressupostos que são condições de possibilidade da investigação científica.
As idéias de Thomas Kuhn, sobre a estrutura das revoluções científicas, alcançaram grande ressonância devido ao fato de: abarcarem um campo muito amplo que vai da lógica da descoberta científica à psicologia (e à sociologia) da produção científica; seus conceitos básicos terem suficiente flexibilidade para admitir interpretações as mais diversas. Assim, é preciso considerar que uma mudança de paradigma pode acontecer subitamente, a exemplo daquele “deslocamento” da visão, antes indicado, como também pode acontecer que a formação de um novo paradigma leve muito tempo para se consolidar, o que pode implicar a coexistência de dois ou mais paradigmas num mesmo momento histórico.
Kuhn sempre rejeitou interpretações extremas de suas idéias. Assim, recusou todo reconstrucionismo e mesmo todos os falseamentos ingênuos; não aceitou que sua teoria sobre a estrutura e a história das teorias científicas fosse tratada como uma mera manifestação de historicismo, psicologismo ou de sociologismo. Seu trabalho está voltado para o desenvolvimento, por meio da descrição e da análise histórica, de uma teoria da racionalidade dentro da qual talvez se possam explicar as noções de paradigma e de mudança de paradigma, incluindo-se aí toda mudança radical ou revolucionária.
Neste sentido, dado o caso, num determinado momento histórico, de um paradigma diferir fundamentalmente de outro e, de modo específico, se um paradigma novo difere fundamentalmente do velho paradigma que, com o advento da crise, chegou a substituir, parece que se tem de concluir que os dois são completamente incomparáveis entre si. Esta situação de incomparabilidade entre os dois paradigmas não só tornaria difícil, mas também impossível uma história da ciência, que é justamente o que Kuhn procura fazer. Além disso, a ausência de uma história da ciência, fatalmente levaria a um irracionalismo e a um relativismo terminantemente recusados por Kuhn.
Essa incomparabilidade ou incomensurabilidade entre duas teorias, consiste numa diferença estrutural nas relações de termos-tipo (Kindterms) usados em distintas comunidades. Ela é sempre local, quer dizer, uma mudança teórica revolucionária afeta sempre alguns conceitos, mas nunca sua totalidade. Esse caráter local (específico, não geral) da incomensurabilidade, é o que permite uma ampla base conceitual comum para que se possa, apesar das diferenças conceituais pontuais, comparar teorias.
Bem entendida, a incomensurabilidade não impede – como alguns podem pensar – um real progresso do conhecimento. Ao contrário, é ela que, na realidade, leva ao progresso cognoscitivo, uma vez que este progresso não é meramente quantitativo, implicando, assim, uma profunda reorganização do conhecimento até então estabelecido. Não se trata de uma busca progressiva da verdade, pois Kuhn nega a existência de uma verdade independente da teoria.
O progresso científico precisa ser
Última edição por Eduardo em Sáb Abr 09, 2011 7:28 pm, editado 6 vez(es)
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[Kuhn] Estrutura das Revoluções Científicas: Ciência, Fato, Paradigma e Cooporativismo Científico :: Comentários
O “fato científico” nas concepções de Fleck e Kuhn
"O problema fundamental que Fleck quis responder foi o da origem e do desenvolvimento do fato científico. E para mostrar como os fatos são construídos sociologicamente, ele analisou o conceito de sífilis, passando, por sua vez, por vários estilos de pensamento diferentes, desde seus primórdios até a reação de Wassermann. Enquanto para Fleck o principal objeto é a descrição da constituição do fato científico em um determinado estilo de pensamento e secundária a mudança de um estilo em outro, pois para Fleck não existe algo como revoluções científicas, para Kuhn, ao contrário, estava interessado exatamente nessa mudança que ele chamou “revolução”. Contudo, sustentamos que a concepção de Kuhn não é incompatível com a de Fleck, mesmo que Fleck veja a referida mudança como uma transformação gradual, semelhante às transformações das espécies biológicas. Para Kuhn, o importante é mostrar quão profundas são as diferenças entre os paradigmas, e, ao mesmo tempo, como elas se ocultam da comunidade científica. Neste aspecto, Kuhn tem muito mais a dizer do que Fleck. Não obstante, ele estava comprometido com a construção do fato científico, pois ele só é possível por meio do paradigma que leva os membros da comunidade a perceberem um fato como tal. Por exemplo, a descoberta de um novo fato científico só é possível se um cientista pertence a um determinado paradigma; só assim estará apto a ver as anomalias que constituem um novo fato. Neste aspecto, Fleck é muito mais sofisticado, quando na monografia de 1935, utilizou um estudo comparativo de manuais de anatomia, onde mostra as diferenças de percepção do corpo humano. Kuhn utilizou os clássicos exemplos da Gestalt, como, por exemplo, a figura pato-coelho, que não se mostram tão relacionados ao “perceber configurado” requerido por um paradigma como os exemplos de Fleck (cf. FLECK, 1986, p. 181-93).
Em A Origem e o desenvolvimento de um Fato Científico (1935), Fleck analisou o desenvolvimento da sífilis numa obra de quatro capítulos. Podemos comparar a tarefa de Fleck a de Kuhn ao escrever seu livro “A Revolução Copernicana: a astronomia planetária no desenvolvimento do pensamento ocidental” (KUHN, 1957). Assim, Kuhn, de modo semelhante ao de Fleck com o conceito de sífilis, fez o percurso da passagem do sistema ptolomaico ao copernicano. A dívida de Kuhn em relação a Fleck, segundo nossa avaliação, está presente já nesse trabalho.
A metodologia de Fleck consistiu primeiramente em reconstruir historicamente o conceito de sífilis, ou seja, como surgiu o conceito atual de sífilis e sua evolução histórica: entidade nosológica “mítico-ética”, “empírico-terapêutica”, patogênica e etiológica. No segundo capítulo, Fleck fez uma avaliação epistemológica dessa reconstrução, isto é, das conseqüências epistemológicas da história do conceito de sífilis. Fleck foi consciente da dificuldade de reconstruir a história (em linguagem kuhniana: o período pré-paradigmático) de uma disciplina científica. Segundo Fleck:
“É muito difícil, se não impossível, descrever corretamente a história de um campo do saber. Esta se compõe de muitas linhas de desenvolvimento de idéias, que se cruzam e se influem mutuamente. Todas elas teriam que ser representadas, primeiro, como linhas contínuas e depois, em um segundo momento, com todas as conexões estabelecidas entre elas. Em terceiro lugar, se teria que traçar, simultaneamente e à parte, a direção principal de desenvolvimento, tomada como uma media idealizada. Portanto, é como se quiséramos reproduzir, por escrito e com fidelidade ao desenvolvimento natural, uma conversação muito animada, na qual várias pessoas falassem simultaneamente uma com as outras tentando impor sua voz sobre as demais e na qual haveria, sem embargo, uma idéia comum que vai cristalizando. Um esquema mais ou menos artificial ocuparia então o lugar da descrição de uma interação dinâmica vital” (FLECK, 1986, p. 62).
No terceiro capítulo, temos novamente um estudo histórico sobre a reação de Wassermann e seu desenvolvimento, bem como a participação individual e coletiva neste desenvolvimento. Por fim, o último capítulo é uma avaliação epistemológica sobre o tema do terceiro capítulo, ou seja, a reação de Wassermann.
O que é um fato? Foi com essa interrogação que Fleck abriu sua monografia. Freqüentemente, o fato é considerado como algo fixo, independente do sujeito conhecedor, é aquilo que é dado; “fato” é considerado também como sinônimo de “existência” ou “realidade”. Fleck questionou esse tipo de noção do fato científico, assim como que o objetivo das ciências fosse o de descobrir tais fatos. Também Kuhn questionou a possibilidade de podermos apreender os fatos em si ou fatos comuns a todos os humanos, independentemente de sua educação, bem como, de que o objetivo da ciência seja descobrir fatos novos. Segundo Kuhn, o objetivo do cientista é o de resolver problemas gerados pela “ciência normal”, isto é, desenvolver o paradigma estabelecido até onde for possível.
Segundo Fleck, a concepção realista nos impede de obter um conhecimento crítico do mecanismo cognitivo de produção dos fatos. Fleck sugeriu que a análise de um fato novo, como o da chamada reação de Wassermann é epistemologicamente interessante, pois é fenomenológica e historicamente rica, e livre dos prejuízos a que nossos fatos cotidianos estão submetidos."
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É isso!
Fonte:
Adilson Alciomar Koslowski: “Nas origens da Estrutura das Revoluções Científicas: A influência de Fleck, Polanyi e Quine na Filosofia da Ciência de Thomas Samuel Kuhn”. (Dissertação submetida ao Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Área de Concentração: Epistemologia. Orientador: Prof. Dr. Alberto O. Cupani). Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2004.
Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.
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"Anomalia e crise" em Thomas Kuhn
“O exercício da ciência normal admite a percepção de anomalias, fato ligado à característica de relaxamento das restrições impostas pelo paradigma, conforme explicitado na seção anterior. Portanto, o adjetivo “normal” para designar o período em que a pesquisa acontece de forma persistente e determinada, segundo as indicações do paradigma, não indica uma rotina em que os imprevistos estão afastados. A crise é provocada pela desorientação da ciência normal quando as anomalias resistem ao trabalho do cientista em enquadrá-las nos preceitos ditados pelo paradigma
[...] a ciência normal freqüentemente suprime novidades fundamentais [...] não obstante, na medida em que esses compromissos retêm um elemento de arbitrariedade, a própria natureza da ciência normal assegura que e a novidade não será suprimida por muito tempo. Algumas vezes um problema comum [...] resiste ao ataque violento e reiterado dos membros mais hábeis do grupo [...] em outras ocasiões, uma peça de equipamento, projetada para fins da pesquisa normal, não funciona segundo a maneira antecipada [...] Desta e de outras maneiras, a ciência normal desorienta-se seguidamente. (KUHN, 2001, p.24-25)
O exercício da ciência normal tem um papel regulador no desenvolvimento da pesquisa científica; ao mesmo tempo é inerente à sua natureza assegurar que a novidade apareça, provocando desequilíbrios. Regular e desequilibrar podem parecer ações paradoxais, entretanto essa combinação constitui-se na força motriz do desenvolvimento científico. Essa aparente contradição revela a presença do cientista como elemento imprescindível deste desenvolvimento. O elemento de arbitrariedade, citado por Kuhn, localiza-se naqueles que assumem o compromisso com a ciência normal, ou seja, os cientistas. O desenvolvimento científico não é determinado apenas pela observação e pela experiência. Elementos, como a história pessoal dos cientistas, ajudam a formular as crenças que a comunidade científica possui em determinada época e constituem os aspectos denominados por Kuhn como “[...] aparentemente arbitrários [...]” (KUHN, 2001, p.23)
Certamente há uma relação estreita e interdependente entre ciência normal e anomalia. Pode-se caracterizar a ciência normal como uma atividade de caráter rígido, estável, que, como já exposto, é regulada e direcionada, exigindo dos cientistas o compromisso em manter a pesquisa no âmbito dos limites impostos pelo paradigma. A anomalia, por sua vez, é elemento implícito na ciência normal. Entretanto, ela é, também, um fator de perturbação, de instabilidade que se instala no exercício da ciência normal.
Depois que elas [novidades fundamentais relativas a fatos e teorias] se incorporam à ciência, o empreendimento científico nunca mais é o mesmo – ao menos para os especialistas cujo campo de estudo é afetado por essas novidades. (KUHN, 2001, p.78)
Pressupõe-se que ciência normal e anomalia não sobrevivem uma sem a outra A ciência normal sem a presença da anomalia seria puro exercício de repetição. O próprio conceito de quebra-cabeças impõe a presença de desafios que se colocam aos cientistas. Esses quebra-cabeças podem ser resolvidos pelo paradigma, podem ser deixados de lado para servirem como objeto de pesquisa futura ou podem perturbar de tal forma o exercício da ciência normal, que sua presença torna necessária uma nova abordagem. Este processo pode levar a uma mudança de paradigma, denominada por Kuhn como Revolução Científica.
O objeto da pesquisa científica é a natureza e seus fenômenos. A complexidade da natureza com a qual a ciência se depara no processo de pesquisa, abre espaço para que cada vez mais novos fenômenos sejam descobertos.
Kuhn denomina como fatos os fenômenos que são descobertos durante o exercício da ciência normal e que não eram esperados ou previstos; denomina como teorias, as invenções que os cientistas propõem para a pesquisa científica, embora o autor afirme que a distinção entre descoberta e invenção seja artificial. O desenvolvimento histórico sugere que a ciência normal sempre é sobressaltada por fatos insuspeitados, pelos quais os cientistas são pegos de surpresa. Quando Kuhn enuncia por meio de um argumento circular, que “[...] é preciso que a pesquisa orientada por um paradigma seja um meio particularmente eficaz de induzir a mudanças nesses mesmos paradigmas que a orientam”(KUHN, 2001, p. 78), está confirmando a relação necessária entre a regularidade da pesquisa científica e a produção de fatos.
Muitos eventos aparecem e reaparecem periodicamente, fazendo com que as descobertas não sejam fatos isolados. O que faz com que um fato seja considerado uma descoberta a ser pesquisada e estudada pela pesquisa científica é a consciência da anomalia, ou seja, a percepção clara de que algo não está bem com a ciência normal. Ao ferir as expectativas que o paradigma originou, a anoma lia obriga os cientistas a explorarem a área em que ela surgiu. Entretanto, o novo fato só será considerado científico, quando o cientista aprender a ver o mundo de uma outra forma. Essa relação entre fato e teoria, apontada por Kuhn, demonstra como a tentativa de distinção entre descoberta e invenção é artificial, isto é, fatos e teorias estão entrelaçados. Não basta aparecerem novos fatos; os cientistas precisam propor quebra-cabeças, de acordo com os pressupostos teóricos, para eliminar a anomalia. Se a anomalia se mostra resistente, a desorientação, que inicialmente seria eliminada, instala-se no exercício da ciência normal.
Quando a anomalia se instala de forma irreversível, de modo que os cientistas não conseguem enquadrá- la na teoria vigente, ela contribui para a mudança de paradigma. A simples assimilação da anomalia pela ciência normal permite uma ampliação do número de fenômenos tratados pelos cientistas, além de uma maior precisão sobre os fenômenos antes tratados. Essa alteração construtiva só é possível pela modificação ou substituição de crenças ou procedimentos antes adotados. Entretanto, outros fatores contribuem para o questionamento do paradigma, como a interferência de eventos externos à comunidade científica. Na ERC, Kuhn trata da instalação irreversível de uma anomalia que culmina na crise e esta pode conduzir ao processo da Revolução Científica. A seguir apresenta-se a caracterização do período crítico no exercício da ciência normal.
Kuhn garante que a consciência da anomalia permite o aparecimento de novos fenômenos e a possibilidade de descobertas científicas aos olhos dos cientistas. Uma consciência mais profunda da anomalia é pré-requisito para as mudanças de teorias, desde que a nova teoria, ao aparecer, proponha promessas inquestioná veis de sucesso. Alguns exemplos citados pelo autor ilustram esse caminho:
A astronomia ptolomaica estava numa situação escandalosa, antes dos trabalhos de Copérnico. As contribuições de Galileu ao estudo do movimento estão estreitamente relacionadas com as dificuldades descobertas na teoria aristotélica pelos críticos escolásticos [...] A Termodinâmica nasceu da colisão de duas teorias físicas existentes no século XIX e a Mecânica Quântica de diversas dificuldades que rodeavam os calores específicos, o efeito fotoelétrico e a radiação de um corpo negro [...] Além disso, em todos esses casos, exceto no de Newton, a consciência da anomalia persistira por tanto tempo e penetrara tão profundamente na comunidade científica que é possível descrever os campos por ela afetados como em estado de crise crescente [...] (KUHN, 2001, p. 94-95)
Com relação ao sistema ptolomaico, fatores de ordem externa, além da consciência da anomalia e das tentativas infrutíferas no sentido de sua eliminação, levaram, mesmo que lentamente, à instalação de uma crise e à mudança de paradigma. A título de exemplo, pode-se citar a pressão social para a reforma do calendário. Este foi um dos fatores externos que influenciou a substituição do modelo cosmológico geocêntrico de Ptolomeu, pelo modelo heliocêntrico de Copérnico. No entanto, os fatores de ordem externa, mesmo importantes, não são determinantes; no centro da crise está o fracasso técnico. Kuhn não faz uma análise profunda sobre as influências de fatores externos na mudança de paradigma e alega que essa discussão não está nos propósitos do seu trabalho.
Muitas das soluções dos problemas enfrentados pela pesquisa normal apareceram bem antes de sua adoção. Entretanto, foram ignoradas porque, no momento em que surgiram, a pesquisa normal não se encontrava em crise. Reforça-se o papel fundamental que a crise tem no desenvolvimento científico.
Um exemplo claro é o de Aristarco, no século três antes de Cristo. Aristarco antecipara o modelo cosmológico heliocêntrico. Entretanto foi ignorado, porque o modelo ptolomaico resolvia muito bem os problemas da época, que dependiam de uma concepção cosmológica. Não havia sentido considerar uma mudança de orientação.
Além de demonstrar a importância da crise, o exemplo de Aristarco reforça a característica funcional da contextualização do paradigma. Kuhn reforça a importância de não prescindir da atenção ao papel do contexto histórico ao se falar em desenvolvimento científico, declarando:
“[...] Afirma -se freqüentemente que se a ciência grega tivesse sido menos dedutiva e menos dominada por dogmas, a astronomia heliocêntrica, poderia ter iniciado seu desenvolvimento dezoito séculos antes. Mas isso equivale a ignorar todo o contexto histórico. Quando a sugestão de Aristarco foi feita, o sistema geocêntrico, que era muito mais razoável do que o heliocêntrico, não apresentava qualquer problema que pudesse ser solucionado por este último”. (KUHN, 2001, pp. 103-104)
As crises “[...] indicam que é chegada a ocasião para renovar os instrumentos [...]” (KUHN, 2001, p. 105) e este é o seu exato significado. As crises provocam desequilíbrio, contudo não impedem que os cientistas resistam a elas.
Uma das formas dos cientistas reagirem à crise é não desistirem de sua pesquisa na forma como está sendo realizada. Para isso, os cientistas não renunciam ao paradigma sob o qual desenvolvem suas pesquisas, mesmo que estejam com suas convicções abaladas e permitam-se considerar alternativas. Além disso, “[...] não tratam as anomalias como contra-exemplos do paradigma” (KUHN, 2001, p.107).
Há uma forte razão para que os cientistas não abandonem o paradigma, quando as anomalias ou os contra-exemplos aparecem. Caso os cientistas assumissem a renúncia ao paradigma apenas por estes fatores, não seriam mais cientistas.
O estudo histórico permite perceber que a rejeição a um paradigma só acontece quando um outro se coloca em substituição. Certamente, o novo paradigma deverá apresentar promessas de solução aos problemas postos pelas novas descobertas. Isso implica que os paradigmas são comparados entre si, além de passarem por uma comparação com a natureza.”
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É isso!
Fonte:
LILIAM FERREIRA MANOCCHI: "PARADIGMAS EM KUHN: CONTEXTO, IMAGEM E AÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA". (Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Filosofia, sob a orientação do Professor Doutor Edelcio Gonçalves de Souza). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2006.
“A concepção de ciência de T. Kuhn se opõe ao modelo explicativo e constitui-se por isso num marco importante na perspectiva do desenvolvimento científico, apresentando as suas teorias epistemológicas num contato mais estreito com a história das ciências. A grande inovação do discurso kuhniano no domínio da filosofia da ciência passa, por um lado, pela afirmação de que o desenvolvimento científico não é cumulativo e, por outro, que a escolha entre paradigmas alternativos não se fundamenta em aspectos teóricos de cientificidade, mas em fatores históricos, sociológicos e psicológicos, ou seja, numa certa subjetividade e até mesmo numa irracionalidade, que acaba por ter um papel decisivo na imposição de determinadas teorias em detrimento de outras. O aspecto mais importante da sua teoria é a ênfase no caráter revolucionário do próprio progresso científico, que se dá, segundo Kuhn, mediante saltos e não numa linha contínua. A forma como vê o progresso científico implica a abordagem de conceitos fundamentais, como "paradigma", "ciência normal", "anomalia" e "revolução".
A fase que precede a formalização de uma ciência é caracterizada por uma espécie de desorganização que somente se estrutura mediante a adoção de um paradigma, ou seja, o período que antecede a adoção de um paradigma é um período de desacordo constante e discussão dos fundamentos pelos cientistas. Em casos como este, existem quase tantas teorias como cientistas. São períodos designados por Kuhn de "pré-ciência". Já na ciência madura, um conjunto de suposições teóricas gerais, leis e técnicas para a aplicação dessas leis, são governados por um só paradigma que coordena e dirige a atividade de grupos de cientistas que nele trabalham.
Thomas Kuhn descreve como ciências imaturas (ou pré-paradigmáticas) aquelas que ainda não têm paradigmas e como tal não podem sequer ser consideradas ciências. Um investigador que pretenda fazer ciência na ausência de um paradigma unificador depara com uma coleção arbitrária de conceitos não organizados, ou pouco consistentes, sem qualquer estrutura integradora capaz de lhes dar coerência e unidade, ou então com múltiplas propostas de estruturas integradoras que são inconciliáveis entre si.
O desenvolvimento da ciência madura processa-se em duas fases: a fase da ciência normal e a fase da ciência revolucionária. A ciência normal é a ciência dos períodos em que o paradigma é unanimemente aceito, sem contestações, no seio da comunidade científica. A ciência normal é o período em que se trabalha num determinado paradigma, adotado por uma comunidade científica. Kuhn retrata este período como um quebra-cabeça simultaneamente de natureza teórica e experimental e avança-se nos problemas que o paradigma permite detectar e resolver. O paradigma fornece os meios para os cientistas resolverem o quebra-cabeça. Neste sentido, uma falha na resolução do quebra-cabeça é vista como uma falha do cientista e não como inadequação do paradigma, tal como quando, num jogo de xadrez, um jogador perde e a culpa lhe é atribuída, e não ao jogo de xadrez. Neste período, procede-se à construção de instrumentos mais potentes e eficazes, se efetuam medições mais exatas e experimentações mais precisas, sem que o cientista procure pela novidade; trata-se de uma espécie de variação em torno do mesmo, como nos deixa antever Kuhn: “A característica mais surpreendente dos problemas de investigação normal (...) é a de tão pouco aspirarem a produzir novidade.” Entretanto, as novidades vão surgindo, pois à medida que a articulação teórica do paradigma aumenta, conseqüentemente aumentam as informações e dados da própria teoria, aumentando também o risco de engano.
Em termos de paradigma, quanto maior é o conteúdo informativo, maior e mais fácil é ser desmentido. Esta poderia ser uma das explicações das anomalias, problemas que o cientista não consegue resolver dentro do paradigma. Para Kuhn, entretanto, a existência de anomalias ou problemas é comum. Não é pela simples existência de uma anomalia que se instala uma crise, esta só ocorre quando a gravidade da anomalia chega a ameaçar os fundamentos de um paradigma, resistindo a todas as tentativas empreendidas pela comunidade científica em removê-la.
Assim que uma anomalia é considerada séria e grave, o primeiro esforço de um cientista ao se deparar com ela é dar-lhe estrutura, aplicando com mais força ainda as regras da ciência normal, mesmo dando-se conta de que elas não são absolutamente corretas. A crise é instalada, portanto, quando o aumento das anomalias faz com que os cientistas percam a confiança no paradigma até então seguido e questionem os fundamentos e métodos anteriormente adotados. Estas discussões “expressam descontentamento explícito (...) tudo isto são sintomas da transição de uma investigação normal para uma não ordinária”.
A gravidade de uma crise aprofunda-se ainda mais na emergência de um paradigma rival que será muito diferente e até incompatível com o anterior, uma vez que, a transição de um paradigma para outro não é um processo cumulativo, mas uma reconstrução do campo de investigação a partir de novos fundamentos. “A tradição científica normal que surge de uma revolução científica é incompatível com as que existiam anteriormente”. Enfraquecido e minado um paradigma, abre-se a porta para a revolução. A transição para um novo paradigma é a revolução científica.
Como esta terminologia não é familiar aos pesquisadores da área da saúde e educação, e é importante que esteja suficientemente esclarecida para se poder acompanhar o desenvolvimento de minha argumentação. Mencionarei uma vez mais as linhas mestras do pensamento Kuhniano.
Retomando um conceito primordial: paradigma para Kuhn é mais do que uma concepção de mundo, é um modo de fazer ciência, pressupondo um modo de ver e de praticar. Engloba igualmente um conjunto de teorias, instrumentos, conceitos e métodos de investigação. Ele indica para comunidade o que é interessante investigar, como concretizar essa investigação e limita os aspectos considerados relevantes da investigação científica. Quando a ciência encontra-se na fase da ciência normal, o cientista não procura questionar ou investigar aspectos que extrapolam o próprio paradigma. A curiosidade não é propriamente uma característica do cientista, este se limita a resolver dificuldades que vão permitindo mantê-lo em atividade e demonstrar igualmente a sua capacidade na resolução dos enigmas.
Há uma mudança no rumo da ciência normal quando um destes problemas, em geral bastante grave ou atípico, não consegue ser resolvido dentro das concepções teóricas do paradigma. Daí que o quebra-cabeça se transforma em anomalia, isto é, alguns dos praticantes dessa ciência começam a descobrir contradições internas e chegam à conclusão de que a forma de ver o mundo em que essa ciência se baseia não é adequada. Começam a descobrir que o mundo deveria ser olhado de outra maneira. A percepção da anomalia nem sempre permite a percepção da novidade. Começa-se uma investigação na área onde houve esta anomalia para tentar transformá-la naquilo que a teoria tradicional sempre conseguiu resolver. Essas experiências geram descobertas nem sempre previstas. Quando as anomalias ultrapassam o controle, instala-se uma crise.
O período de crise, caracterizado pela transição de um paradigma a outro, pode ser bastante longo. É compreensível que assim seja, pois o paradigma emergente estabelece as condições de cientificidade do conhecimento produzido no seu âmbito, e essas condições podem ser consideradas, pelos defensores do velho paradigma, como ridículas, triviais ou insuficientes, ou seja, os cientistas claramente comprometidos e educados à luz do paradigma anterior, fazem de tudo para impedir a substituição.
Neste período, o diálogo entre os cientistas é um diálogo de surdos, já que existe uma clara incompatibilidade de paradigmas. Utilizando a linguagem kuhniana, os paradigmas são incomensuráveis. Está-se na presença de duas visões de mundo radicalmente diferentes, o que torna impossível uma solução de compromisso, na tentativa de tornar compatíveis os dois paradigmas. Este período de crise evidencia que o espírito crítico e a audácia na procura da verdade não são características do cientista. O cientista é, muito mais, um indivíduo profundamente conservador, que a todo o custo procura resistir à mudança (princípio kuhniano da tenacidade), do que alguém que passa a vida questionando aquilo que aprendeu. Ou seja, o cientista defende esse patrimônio de um modo insistente e procura resistir a mudanças bruscas que acarretem uma redefinição radical do trabalho até então realizado.
Neste período de crise – e estou ressaltando esta fase, pois a considero parecida com o período pré-paradigmático em que se encontra a educação somática – as descobertas de anomalias e as teorias que procuram explicar o mesmo fenômeno, sob diferentes óticas, provocam instabilidade só resolvida pela emergência de um novo paradigma. É a fase da revolução científica: muda-se a forma de olhar o real, criam-se novos paradigmas. São, portanto, as diversas formas de ver o mundo que Kuhn chamou paradigmas. Nas palavras de Kuhn “um paradigma é o que os membros de uma comunidade científica compartilham e, reciprocamente, uma comunidade científica consiste em homens que compartilham um paradigma”. Quando alguém descobre um paradigma distinto, sobre o qual é possível basear o desenvolvimento duma ciência, diz-se que a ciência é, durante esse período, uma Ciência Revolucionária.
Depois de traçado todo o percurso da ciência normal até a emergência do novo paradigma, é importante ressaltar que mesmo sua elaboração e seu amadurecimento demandando, por vezes, bastante tempo no seio da comunidade científica. O insight da sua força estruturadora acontece sempre de repente. Como naquele famoso teste psicológico que manda construir quatro triângulos com seis palitos de fósforos, também a aceitação de um novo paradigma impõe uma radical mudança de referência. No caso dos triângulos, buscamos em vão resolver o problema no plano, até que, de repente, um lampejo nos ilumina e percebemos que a solução é uma figura tridimensional, o tetraedro.”
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É isso!
Fonte:
Maria Emília Mendonça: "A psicomotricidade e a educação somática à luz da psicanálise winnicottiana". (Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Psicologia Clínica sob a orientação do Prof. Dr. Zeljko Loparic). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC. São Paulo, 2007.
Última edição por Eduardo em Dom Jan 23, 2011 9:25 pm, editado 2 vez(es)
Das críticas à revolução científica kuhniana
[...] Não é de se estranhar que os historiadores e, em geral, os interessados no real proceder da ciência tenham visto na Estrutura das Revoluções Científicas uma estimulante renovação, uma filosofia da ciência cujos problemas e formulações lhes fossem familiares, úteis e pertinentes (BELTRÁN, 1989, p. 53, tradução minha).
Em particular, todos nós, com exceção de Toulmin, compartilhamos da convicção de que os episódios centrais do progresso científico (os que tornam o jogo digno de ser jogado e a atividade digna de ser estudada) são as revoluções. (Kuhn, 1979, p. 298).
Thomas Kuhn instaurou um novo momento na tradição historiográfica sobre as revoluções científicas. Seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas alcançou grandes proporções e sua concepção sobre a revolução científica teve grande aceitação,tanto entre os estudiosos como entre o público em geral. O entendimento das revoluções científicas como uma troca de paradigmas tornou‐se patente, em parte, devido à forma didática com a qual Kuhn expõe seus argumentos no decorrer do Estrutura. Além disso, afirma Beltrán, as concepções kuhnianas relacionaram‐se com as idéias sobre o desenvolvimento científico de Koyré, de Popper, entre outros. Mas, apesar da grande recepção e repercussão de seus trabalhos, seguiram‐se inúmeras críticas endereçadas aos trabalhos kuhnianos.
Devido à importância das novas concepções contidas no Estrutura, realizou‐ se um evento cujo norte foram as idéias expressas nessa obra. O “Quarto Colóquio Internacional de Filosofia da Ciência” ocorreu em julho de 1965, em Londres, sob o comando de Sir Karl Popper. 33 Vários trabalhos se sucederam à apresentação em que Kuhn discute sua relação com o pensamento de Popper. 34 Tal apresentação, intitulada “Lógica da Descoberta ou Psicologia da Pesquisa”, compõe o primeiro artigo da coletânea referente ao Colóquio londrino. Entre os trabalhos sucessivos a essa apresentação têm‐se as mais célebres críticas ao projeto kuhniano contido no Estrutura, em especial a três de seus conceitos: Paradigma, Revolução Científica e Incomensurabilidade.
No quinto artigo da coletânea, Margaret Masterman empreende um estudo específico sobre o conceito de paradigma. Conclui que, em uma obra cientificamente clara (visto que é muito lido pelos cientistas) e filosoficamente obscura (visto que os filósofos a interpretam de diferentes maneiras), Kuhn desenvolve uma complexa teoria tendo por base o termo paradigma. Para compreender o legado kuhniano sobre as revoluções científicas seria necessário elucidar o que o autor denomina como paradigma. Ao longo de sua explanação, Masterman elenca vinte e um sentidos diferentes utilizados por Kuhn para classificar esse conceito no Estrutura. A autora afirma que “nem todos esses os sentidos são incompatíveis entre si: alguns podem ser elucidações de outros.” (MASTERMAN, 1979, p. 79). Após listar as diferentes conceituações de paradigma, Masterman questiona se haveria algo de comum entre esses diferentes sentidos e sugere reluzi‐los em três grupos. Quando Kuhn descreve mais uma noção ou entidade metafísica do que uma noção ou entidade científica (como um conjunto de crenças, uma especulação metafísica bem sucedida, mitos ou um princípio organizado que governa a percepção), Masterman classifica esse uso de “paradigmas metafísicos” ou “metaparadigmas”. Outro agrupamento para o termo paradigma é o de natureza sociológica, denominado de “paradigma sociológico”. Paradigmas poderiam, portanto, ser definidos como uma realização científica universalmente reconhecida, como um conjunto de instituições políticas ou ainda, como um conjunto de hábitos científicos anteriores aos metaparadigmas. Por último, aparece o que Masterman denomina “paradigmas de artefato” ou “paradigmas de construção”. Estes se relacionam aos momentos em que Kuhn emprega o termo de forma mais concreta, ou seja, como manual, como paradigma gramatical desse manual, como analogia entre teorias, como fontes de instrumentos, ou como experiência de gestalt. Masterman encerra sua exposição afirmando que a grande inovação realizada por Kuhn teria sido ir além da narrativa gradual das transformações descrevendo o esgotamento de um paradigma e a emergência de outro.
Apesar de Masterman criticar a polissemia do conceito de paradigma, é possível afirmar que essa diversidade de significados trouxe conseqüências positivas para o trabalho de Kuhn. Segundo CONDÉ (2005b), o termo paradigma adquire maior inteligibilidade, em Kuhn, quando entendido não exatamente como sendo um conceito, cujo principal traço seria o de uma formalização unívoca, mas como sendo uma noção, cujos matizes de sentido permitem alcançar uma maior gama de elementos. Assim, o termo pôde denominar uma técnica de instrumentação, um manual científico e também um conjunto de crenças aceitas. Foi justamente tal amplitude de significações o que possibilitou ao projeto de Kuhn transitar em várias áreas, na Filosofia, na História, na Sociologia e mesmo nas chamadas ciências hards.
No Congresso de 1965, outros pesquisadores também questionaram o entendimento de Kuhn sobre as revoluções científicas. Sendo os paradigmas tão polissêmicos, podendo abarcar constelações tão amplas, de métodos, teorias ou valores, Kuhn argumenta que a escolha de um novo paradigma não é apenas regulada pela experiência neutra, pelos dados da natureza ou pela lógica. Tal fato é criticado por Popper, pois, segundo esse autor, o desenvolvimento científico deveria ser regido pela lógica das idéias e não por outros fatores (como os psicológicos, os sociológicos, os irracionais). Popper (1979) e também Watkins (1979) argumentam contra um conceito específico e basilar do entendimento kuhniano das revoluções científicas: a “ciência normal”. Segundo esses autores, o período denominado ciência normal seria inútil para o entendimento do desenvolvimento científico. Isso porque nos períodos normais se testa o experimentador e não a teoria, configurando‐se, portanto, como um momento doutrinatário, acrítico. Logo, esses períodos não poderiam ser considerados “normais” na pesquisa científica, pois, segundo Popper, a ciência normal seria uma condição não questionadora e, portanto, não científica (POPPER, 1979, p. 65). Watkins argumenta contra a demasiada atenção desprendida por Kuhn na descrição desses períodos normais, uma vez que seriam não científicos (WATKINS, 1979, p. 41). Para esses autores, aquilo que Kuhn chama “normal” não poderia ser o normal na produção científica, a preço de perder o status de atividade lógica ou racional, visto que não se tratava de um momento questionador. Assim, o que deveria ser considerado comum na produção do conhecimento era aquilo que Kuhn chamava de extraordinário (ciência extraordinária), visto ser um momento questionador, ou seja, lógico/racional. Como já foi dito, na ciência extraordinária Kuhn prende‐se com maior ênfase às questões sócio‐culturais do que às questões teóricas stricto sensu. Isso acarretava sérios problemas na obra kuhniana, segundo afirmavam os críticos do Estrutura.
Essas alegações renderam à teoria sobre as revoluções científicas de Kuhn o título de relativista. “O mito do referencial (psicológico, sociológico), em nosso tempo, é o baluarte central do irracionalismo.” (POPPER, 1979, p. 70). Popper alega que para a teoria kuhniana a troca de paradigmas seria regida mais pela psicologia da pesquisa do que pela lógica da descoberta, da verdade absoluta, objetiva (POPPER, ibidem, p. 69). As revoluções científicas seriam regidas por fatores não científicos, tal fato inviabilizava a aceitação do modelo kuhniano e o classificava como relativista. Lakatos (1979) também desenvolve crítica semelhante no congresso londrino de 1965. “Para Lakatos (1979), crise é um conceito psicológico ‐ trata‐se de um pânico contagioso ‐ e revolução científica kuhniana é irracional, uma questão da psicologia das multidões, sendo este modelo, por ele considerado, uma redução da filosofia da ciência à psicologia ou sociologia dos cientistas.” (OSTERMANN, 1996, p. 193).
Em outra linha crítica, E. Toulmin (1979) vai de encontro à concepção revolucionária – tradição revolucionária, de descontinuidade – presente tanto na teoria kuhniana quanto nas concepções de Popper, Masterman e Watkins. Para Toulmin, a tradição revolucionária desconsidera as passagens, ou seja, os cientistas de passagem, as teorias de passagem entre uma concepção de mundo e outra. Para esse autor, não é possível descrever o desenvolvimento científico por drásticas revoluções científicas. Seria necessário investigar as unidades de variação ao longo do desenvolvimento científico, algo menos drástico do que as rupturas. Por não aceitar a existência de incompatibilidades conceituais tão abruptas entre as teorias de uma geração e de outra, Toulmin defende a evolução conceitual aos moldes darwinistas, em detrimento das rupturas abruptas, das drásticas revoluções. Para ele, deixando para trás as implicações originais do termo revolução, tal como descritas por Cohen, a nova teoria capaz de descrever o avanço científico estaria na sociologia evolucionista. Percebe‐se que, já em 1965, Toulmin antecipa a visão que será posteriormente defendida por Steven Shapin, uma visão crítica do modelo das revoluções científicas conforme Kuhn, conforme toda a tradição revolucionária, composta por autores como T. Kuhn, A. Koyré, H. Butterfield, R. Hall e B. Cohen. Tratarei dessa questão mais detidamente no próximo capítulo. Por ora, é válido dizer que, segundo Toulmin, a idéia de incomensurabilidade seria a responsável pela visão “catastrofista” que configura as grandes rupturas teóricas das revoluções.
O último conceito do Estrutura questionado no congresso londrino que pretendo trabalhar aqui, e talvez o conceito mais caro da teoria kuhniana (visto que as reformulações de Kuhn se concentrarão nesse ponto), foi a noção de “incomensurabilidade”. Para Popper, por exemplo, o termo incomensurabilidade seria outro termo utilizado por Kuhn que daria margem ao irracionalismo. Isso porque diferentes paradigmas podem estar corretos, pois, são incomensuráveis e não se pode provar que um deles está mais próximo da verdade que o outro. Popper argumenta que a transição da gravidade newtoniana para a einsteiniana, um exemplo de revolução científica segundo Kuhn, não seria um salto irracional. Ambas as teorias seriam racionalmente comparáveis e uma estaria mais próxima da verdade fatual e objetiva que outra. “Existem, ao contrário, inúmeros pontos de contato [.] e pontos de comparação.” (POPPER, 1979, p. 70). A incomensurabilidade que inviabiliza o confronto crítico, essencial para a pesquisa científica, não pode ser senão um equívoco lógico de Kuhn, explica Popper. Nessa mesma direção, Watkins diferencia a noção de incomensurabilidade (que não seria uma noção viável) com a incompatibilidade. Segundo esse autor, as diferentes teorias de uma sucessão científica não seriam incomensuráveis, pois haveria inúmeros pontos de contato, conforme explicou Popper. Pode‐se dizer, porém, que as teorias são incompatíveis, diferentes ou opostas. Enfim, algo que não inviabiliza o confronto crítico que garante ao processo seu caráter científico.
Autores como Popper e Watkins, que primaram pelo confronto crítico de diferentes idéias, criticaram duramente a utilização da noção de incomensurabilidade, tal como elaborado no Estrutura. Posteriormente, Thomas Kuhn empreenderá reformulações sobre alguns de seus conceitos e, sobretudo, sobre a questão da incomensurabilidade. Verei esses pontos mais detalhadamente no próximo item. Contudo, resta adiantar que apesar de toda a revisão empreendida por Kuhn, alguns pontos de seu trabalho não foram efetivamente solucionados, entre eles talvez esteja o conceito de “incomensurabilidade”.
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É isso!
Fonte:
Francismary Alves da Silva: “Historiografia da revolução científica: Alexandre Koyré, Thomas Kuhn e Steven Shapin”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós‐Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em História, na Linha de Pesquisa Ciência e Cultura na História, elaborada sob a orientação do Prof.o Dr.o Mauro L. L. Condé. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2010.
Das contribuições de Thomas Kuhn
“Ele tem por contribuição mais importante a idéia de que a ciência avança a pequenos passos, com a colaboração de toda uma comunidade científica, por vezesincluindo várias gerações. Trabalhando em pequenos problemas, eles fazem a ciência avançar aos poucos até que surjam problemas sem solução, com a bagagem teórica que possuem, em número suficientemente relevante. O cientista seria dessa forma um solucionador de problemas, ou de quebra-cabeças, como diz ele próprio. Mas para ele a atividade científica dentro do laboratório não dialoga com esses atores sociais descritos por Merton, mas com o próprio método científico.
Isso representa de fato uma diferença muito grande enquanto definição do objeto de estudo e do método que será usado para a realização do projeto de pesquisa deste autor. Se inserindo dentro de uma determinada tradição da história da ciência, ele se beneficia de seu conhecimento anterior profundo na área das ciências básicas. Seu doutoramento pretérito em física, lhe permite dar esse importante passo diante de seu objeto, que não lhe é tão externo. A Revolução Copernicana foi amplamente estuda por ele, em suas componentes internas, nos desenvolvimento matemáticos e nas longos discussões em torno dos problemas colocados por um lado pela teoria disponível naquela na Europa e por outro pelos resultados obtidos com a observação dos astros. Ele pôde estudar os processos de desenvolvimento e os resultados obtidos, ao longo de tempo, lentamente, pelos contemporâneos e pelo Nicolau Copérnico. Foi a partir da experiência do lidar com esse objeto de estudo que desenvolveu sua teoria.
Ele viu por um lado o lento desenvolvimento do conhecimento nessa época histórica, devedora em grande parte ainda às construções teóricas desenvolvidas pelos gregos – por Ptolomeu, sobretudo. Os problemas colocados pela matemática e pela concepção de mundo que referendava essa construção teórica presente na geração de Copérnico, indicavam os limites em termos de observação que a teoria podia atingir. Copérnico, estudante de Pisa, é descrito como um dos mais talentosos membros de toda uma geração, mas também como membro de uma comunidade que trocava correspondência e informações. Para que pudesse responder aos problemas gerados pela observação dos astros (toda teoria teria seus limites explicativos) foi necessário a Copérnico conceber de uma forma totalmente diferente o mundo. Essa nova concepção de mundo é tão poderosa que influencia todas as outras áreas do conhecimento e das artes.
Uma vez feita essa pesquisa, o autor consegue construir uma teoria dos processos científicos. Os temas estudados são os mesmos ao longo de um grande período temporal, as questões colocadas – os quebra-cabeças oferecidos para solução são, no entanto, determinados de acordo com uma série de critérios. Esse conjunto de critérios constitui a coleção do conhecimento aceito em uma determinada área do saber. Mas não apenas isso, eles constituem também aquilo que é ensinado nas universidades às novas gerações de estudantes, constituindo o ponto inicial a partir do qual toda uma geração de cientistas de uma determinada área do conhecimento parte para realizar suas pesquisas. É a cultura comum de uma comunidade em um determinado corte temporal.
Essas normas que constituem a ‘verdade’ que deve ser aceita por todo iniciado são os paradigmas científicos. Para Kuhn, um paradigma é um elemento chave no
funcionamento da ciência pois é ele que dá a tranqüilidade aos cientistas na realização de suas pesquisas. Essa tranqüilidade é a confiança de que o cientista tem de que não terá que se preocupar em elaborar as questões centrais de seu campo de saber, podendo dedicar cotidianamente o seu tempo à resolução de seus problemas colocados por seus quebra-cabeças. Por mais pontuais e específicos que estes sejam, são os objetos correntes de pesquisa que a maioria dos pesquisadores trabalha e dedica a maior parte de seu tempo.
Uma ciência normal para Kuhn é aquela que possui paradigmas que tornem possível o fazer científico, do ponto de vista teórico, com uma certa dose de previsibilidade. As ciências sociais, para ele, estão em processo de evolução. Os debates teóricos internos a essa ciência, são analisados por Kuhn como uma fase inicial de formação do campo do saber, em que os elementos unificadores de todas as teorias ainda não foram encontrados ou desenvolvidos. Dessa forma, as ciências sociais, após essa fase inicial de ebulição e debates internos – como o foi, segundo ele, a astronomia 3 mil anos atrás – tenderá também a se tornar uma ciência normal.
O modelo de ciência de Kuhn é portanto estático, permitindo e aceitando alguma modificação e evolução no longo prazo, em vistas do desenvolvimento lento da pesquisa pontual nos mais diversos sub-campos. Essa evolução em direção a um novo paradigma, também seria sentida por toda a comunidade científica como uma necessidade, pois, em conjunto, já estariam percebendo os limites – em seu próprio fazer no sub-campo – dos princípios explicativos da teoria, ou do conjunto teórico que definiram tal ciência em determinado período histórico. Uma evolução à [i]petits pas, portanto, contrariando a percepção comum de uma comunidade de cientistas, onde alguns gênios seriam capazes de ter idéias brilhantes a partir do nada.
Mesmo assim, podemos colocar algumas questões relativamente à contribuição que Kuhn nos legou. É que Kuhn nos fala de uma comunidade científica específica, numerosa, alargada, que remete mais a determinadas estruturas científicas e não a outras. Ele diz por exemplo que os problemas colocados pelos cientistas encontrarão, muito provavelmente suas respostas (2007: 28), no fazer científico com esse método que descreve. Trata-se de uma questão de tempo diante das possibilidades abertas por tal tipo de comunidade. Ora, o laboratório que podemos entrever em seus textos possui uma forma quase industrial de produção. Ele remete a um determinado fazer científico em que um conjunto grande de colegas trabalha na mesma direção, buscando atingir objetivos, senão semelhantes, pelo menos complementares."
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É isso!
Fonte:
Carlos Potiara Castro: “O encontro de Apolo com a floresta: ciências sociais, ocidentalização do mundo e a Amazônia”. (Tese de doutorado em Ciências Sociais, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP).Campinas, 2008.
As visões de ciência de Thomas Kuhn e Gaston Bachelard
“Em primeiro lugar, ambos trabalham com o binômio ruptura-continuidade quando refletem sobre o desenvolvimento da ciência e do indivíduo. Já explicitamos de que modo isso aparece na epistemologia kuhniana, na qual a mudança entre paradigmas requer uma ruptura. Embora Kuhn enfatize a idéia de “comunidade científica”, deixa claro que o indivíduo particular deve ser convertido ao novo paradigma, e discute, como vimos, “boas razões” para essa adesão. Isso significa que a ruptura dá-se na ciência como um todo e no indivíduo, em particular. Bachelard, embora não se utilize da noção de paradigma, defende também a idéia de ruptura, que para ele significa um rompimento com os obstáculos epistemológicos que se colocam para o indivíduo. Sua ênfase encontra-se no indivíduo, no espírito científico que evolui superando obstáculos. E nos fala também ele de uma “conversão”:
“Todo o progresso real no pensamento científico necessita de uma conversão. Os progressos do pensamento científico contemporâneo determinam transformações nos próprios princípios do conhecimento.”
A idéia de continuidade parece-nos ainda mais clara em Bachelard, uma vez que no conceito de perfil epistemológico está garantida a permanência das diversas doutrinas filosóficas. Isso representaria um tipo de continuidade conceitual no indivíduo, uma vez que os conceitos “ultrapassados” continuam fazendo parte de sua estrutura cognitiva, podendo ser usados tanto em sua linguagem cotidiana como na resolução de problemas científicos. O “alargamento” filosófico proposto por Bachelard por meio de sua filosofia do não esclarece-nos acerca da natureza da continuidade existente, por exemplo, entre a mecânica newtoniana e a relatividade, que representa um tipo de continuidade conceitual na ciência, não deixando, ao mesmo tempo, de destacar a ruptura existente entre uma e outra.
Esse segundo tipo de continuidade é apontado por Kuhn quando afirma que um paradigma conserva boa parte das realizações científicas passadas, e que o “novo” conhecimento sempre resgata parte do anterior, sob nova ótica. No entanto, o autor não aprofunda muito a natureza desse “resgate”, e foi justamente nesse ponto que consideramos oportuna a introdução de algumas idéias de Bachelard. Quanto ao primeiro tipo de continuidade, ou seja, a continuidade conceitual no indivíduo, Kuhn parece contradizer as teses de Bachelard ao defender que o cientista normal é um devoto exclusivo de um paradigma. A questão é complexa, pois não há correspondência direta entre o “paradigma” kuhniano e a “doutrina filosófica” bachelardiana.
A contradição tende a desaparecer se assumirmos um ponto de vista “bachelardiano”, numa tentativa de “alargar” a posição de Kuhn. Afirmaríamos então que o cientista normal pode, por vezes, utilizar-se de paradigmas “ultrapassados”, do mesmo modo que se utiliza de noções filosóficas “ultrapassadas”. No lançamento de um satélite, por exemplo, pode não ser necessário fazer uso de correções relativísticas, o que garante a aplicação do paradigma newtoniano. Os cientistas envolvidos podem,certamente, pensar, agir e comunicar-se de forma newtoniana ao levar a cabo tal atividade. Isso não significa que não haja um paradigma dominante, pois o cientista sabe que está aplicando parte de um paradigma “ultrapassado”. Ainda que não tenha essa clareza durante todo o tempo, tomará o devido cuidado ao escrever um trabalho científico a respeito. Pode-se estabelecer aqui, inclusive, um paralelo com um estudante principiante de física que, em situações de sala de aula, utiliza corretamente a física newtoniana na solução de exercícios típicos, e deixa transparecer a física aristotélica em situações não convencionais.
São os protagonistas de revoluções, entretanto, que nos evidenciam de forma maiscontundente como noções filosóficas e paradigmas diferentes podem conviver em um mesmo indivíduo. Kuhn salienta a existência de “debates filosóficos” nos momentos de transição. A “ciência extraordinária” é um momento propício para aflorar esse tipo de discussão. Encontramos em Galileu, Planck e Bohr, entre outros, fortes evidências em favor dessa análise, que seria uma interpretação bachelardiana tanto do espírito que articula a ciência normal quanto daquele associado às revoluções científicas.
Chamamos a atenção, nos parágrafos anteriores, para a continuidade existente apesar das rupturas, para a sutil continuidade entre paradigmas incomensuráveis, que pode variar de intensidade e natureza (conceitual, ontológica, formal-matemática etc). Haveria ainda espaço para falarmos em outro tipo de continuidade, presente nos períodos de “calmaria” representados pela prática da ciência normal. Essa seria um tipo explícito de continuidade, é a própria articulação do paradigma. É, mais apropriadamente, um continuísmo. É essa continuidade que Kuhn caracteriza como um aspecto cumulativo da ciência normal.
A análise precedente parece-nos relacionar, por fim, as visões do processo ruptura-continuidade em Kuhn e Bachelard, complementando-as. Contudo, não se dá essa complementação de modo tácito, restando uma vastidão de problemas filosóficos “abertos”. Por exemplo, o das possíveis relações entre a noção de “paradigma” e a idéia de “doutrina filosófica”.
O caráter conservador da atividade científica é bastante evidente na visão kuhniana. Já Bachelard não segue esse caminho, mas deixa claro que, se deve haver rupturas, é porque há obstáculos colocados pela própria prática científica. Ao discutir o conceito de “massa negativa” de Dirac, por exemplo, afirma que para o cientista do século XIX esse conceito pareceria “monstruoso”, e seria considerado um erro fundamental. Não seria essa uma situação na qual a ciência normal procura afastar uma anomalia, desconsiderando-a, tratando-a como não-científica? As dificuldades de superação de um racionalismo simples em direção ao ultra-racionalismo evidenciam como:
“(...) as filosofias mais sãs como o racionalismo newtoniano e kantiano podem, em determinadas circunstâncias, constituir um obstáculo ao progresso da cultura.”
Vemos também profundas semelhanças entre a noção de incomensurabilidade de Kuhn e a idéia de transcendência presente em Bachelard. Os dois autores certamente concordam no que se refere à existência de mudanças nos significados de conceitos como espaço, tempo, massa, energia etc, quando analisamos comparativamente as mecânicas de Newton e de Einstein. Entretanto, Kuhn fala de uma transformação radical na visão de mundo do cientista, que passa a viver num “mundo diferente” com a mudança de paradigma. Bachelard não parece ir tão longe, preocupado que está em evidenciar o “alargamento” dos conceitos, característico do novo espírito científico. Ambos, no entanto, concordam quanto à existência de mudanças ontológicas.
Outro ponto importante a considerarmos aqui é em que medida a concepção de progresso filosófico em Bachelard aponta um “destino”, um fim último. Seria o ultra-racionalismo o estágio final da evolução? Essa é uma questão polêmica, pois vimos que a concepção “evolucionária” do progresso científico, presente em Kuhn, refere-se a uma evolução a partir de, e não em direção a. No entanto, parece-nos prematuro atribuir essa idéia “finalista” para a hierarquia proposta por Bachelard. Em nenhum momento ele parece conceber o ultra-racionalismo como algum tipo de “limite superior” em termos de doutrinas filosóficas, colocando um fim ao progresso filosófico dos conceitos. Sua preocupação é, antes, de caracterizar um “novo espírito científico” que surge, e de analisar as bases filosóficas que o sustentam, e que refletem o desenvolvimento histórico correspondente.
Bachelard não “dita regras”, e a própria natureza de sua filosofia do não nos parece proibir uma interpretação pretensamente mais “fechada” da proposta bachelardiana. Ousaríamos dizer que o progresso para Bachelard é, sim, “em direção a”: mas em direção a uma filosofia aberta que reflete uma racionalidade que se complica, desdobra-se e multiplica as próprias direções possíveis para uma compreensão posterior dos conceitos.
Há uma evolução não em direção à verdade, à compreensão absoluta da natureza, mas em direção à multiplicidade de direções, ao não-absoluto, no sentido da complicação e do desdobramento que os conceitos e teorias sofrem ao longo desse processo. O progresso é epistemológico, e não ontológico, o que nos lembra novamente as idéias de Kuhn, quando defende que a sucessão: teoria aristotélica, mecânica de Newton, e relatividade, não representa uma “direção coerente de desenvolvimento ontológico”.
Certamente encontraremos, em ambas as epistemologias, uma série de implicações de natureza educacional. Kuhn e Bachelard ainda têm, nesse aspecto, muito a nos dizer. Deixaremos, entretanto, para um capítulo posterior essas considerações. Por ora, gostaríamos de finalizar com uma pergunta: poderia haver melhores maneiras de promover o progresso científico?
No posfácio de A Estrutura das Revoluções Científicas, Kuhn relata algumas críticas recebidas por seu trabalho, acusando-o de estabelecer uma confusão entre o descritivo e o normativo, entre o “é” e o “deve ser”. Vejamos então o que ele diz:
“As páginas precedentes apresentam um ponto de vista ou uma teoria sobre a natureza da ciência e, como outras filosofias da ciência, a teoria tem conseqüências no que toca à maneira pela qual os cientistas devem comportar-se para que seu empreendimento seja bem sucedido. Embora essa teoria não necessite ser mais correta que qualquer outra, ela proporciona uma base legítima para o uso dos “o que poderia ser” (should) e “o que deve ser” (ought).”
O autor defende sua teoria dizendo que os cientistas comportam-se como ela prescreve. Na realidade, parece realmente possível fazermos leituras da obra de Kuhn bastante diferentes, que vão desde uma crítica contundente à prática científica até uma prescrição do fazer científico, passando por uma simples descrição despretensiosa.
Há, sem dúvida, “boas razões” para aderirmos a esse “paradigma epistemológico”. A principal delas é que (e esperamos tê-la justificado suficientemente!) a proposta de Kuhn parece-nos descrever adequadamente o trabalho dos cientistas e permite-nos compreender a evolução histórica da ciência. Embora essa teoria “não necessite ser mais correta que qualquer outra”, compartilhamos com ela uma concepção de como é a ciência. Mas a nossa leitura da obra de Kuhn não nos permite encará-la como uma prescrição, tampouco despretensiosa. Pelo contrário, tomaremos muitas de suas falas como críticas severas quando, em seguida, discutirmos uma concepção educacional que se pretenda transformadora. Sua epistemologia é tomada por nós não de uma forma dogmática, fechada. Resguardamo-nos o direito de incorporar a ela elementos importantes de outras epistemologias, de maneira que, parafraseando Bachelard, essa diversidade permita-nos esclarecer as diversas “faces” da ciência.
Desse modo, quanto à questão colocada acima (poderia haver melhores maneiras de promover o progresso científico?), o trabalho de Kuhn não nos permite estabelecer conjecturas, respondendo talvez com um histórico “não”. Mas a epistemologia de Bachelard parece em alguns momentos pregar uma atitude mais crítica e transformadora por parte do cientista. No debate entre realismo e racionalismo, com respeito ao conceito de massa, ele deixa escapar que:
“Só existe um meio de fazer avançar a ciência; é o de atacar a ciência já constituída, ou seja, mudar a sua constituição.”
Com isso queremos salientar que, embora a idéia de progresso histórico da ciência seja um elo de ligação entre Kuhn e Bachelard, suas diferentes abordagens sugerem respostas contrárias para a questão colocada por nós. A citação acima parece contradizer a prática da “ciência normal”. No entanto, Bachelard não aprofunda essa questão, não estabelece “diretrizes” claras para a prática posterior da ciência, ainda que aponte o aprofundar do pensamento racional.
Consideramos, no entanto, suficientemente apresentada, para os nossos propósitos, a nossa concepção de ciência e de seu desenvolvimento. Contudo, face a essa última polêmica, apresentaremos a seguir uma resposta possível, a partir da análise de algumas idéias defendidas por Paul Feyerabend. Isso levar-nos-á a novas conclusões..."
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É isso!
Fonte:
ANDRÉ FERRER PINTO MARTINS: “O ENSINO DO CONCEITO DE TEMPO: CONTRIBUIÇÕES HISTÓRICAS E EPISTEMOLÓGICAS”. (Dissertação apresentada ao Instituto de Física e à Faculdade de Educação como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ensino de Ciências – Modalidade Física. Banca Examinadora: Prof. Dr. JOÃO ZANETIC (Orientador) Profª. Drª. HERCÍLIA TAVARES DE MIRANDA Prof. Dr. MANOEL ROBERTO ROBILOTTA). Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.
Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.
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Thomas Kuhn: A função da ciência normal e das revoluções
A função da ciência normal e das revoluções
“Alguns aspectos dos escritos de Kuhn poderiam dar a impressão de que seu relato da natureza da ciência é puramente descritivo, isto é, que seu objetivo não é outro que descrever as teorias científicas ou paradigmas e a atividade dos cientistas. Fosse esse o caso, então o relato da ciência de Kuhn teria pouco valor como teoria da ciência. Uma suposta teoria da ciência, baseada apenas na descrição, estaria aberta a algumas das mesmas objeções que foram levantadas contra o relato indutivista ingênuo de como se chegava às próprias teorias científicas. A menos que o relato descritivo da ciência seja formado por alguma teoria, nenhuma orientação é dada quanto a que tipos de atividades e produtos de atividades devem ser descritos. Especialmente as atividades e as produções de cientistas picaretas precisariam ser documentadas com tantos detalhes quanto as de um Einstein ou de um Galileu.
É um erro, contudo, considerar a caracterização da ciência de Kuhn como se originando somente –de uma descrição do trabalho dos cientistas. Kuhn insiste que seu relato constitui uma teoria da ciência porque inclui uma explicação da função de seus vários componentes. Segundo Kuhn, a ciência normal e as revoluções servem funções necessárias, de modo que a ciência deve implicar estas características ou algumas outras que serviriam para desempenhar as mesmas funções. Vejamos quais são estas funções, segundo Kuhn.
Os períodos de ciência normal dão aos cientistas a oportunidade de desenvolver os detalhes esotéricos de uma teoria. Trabalhando no interior de um paradigma, cujos fundamentos dão como pressupostos, eles são capazes de executar trabalhos teóricos e experimentais rigorosos, necessários para levar a correspondência entre o paradigma e a natureza a um grau cada vez mais alto. É através de sua confiança na adequação de um paradigma que os cientistas são capazes de devotar suas energias a tentativas de resolver os enigmas detalhados que se lhes apresentam no interior de um paradigma, em vez de se empenharem em disputas a respeito da legitimidade de suas suposições e métodos fundamentais. É necessário que a ciência normal seja amplamente não-crítica. Caso todos os cientistas fossem críticos de todas as partes do arcabouço no qual trabalhassem todo o tempo, trabalho algum seria feito em profundidade.
Se todos os cientistas fossem e permanecessem cientistas normais, então uma ciência específica ficaria presa em um único paradigma e não progrediria nunca para além dele. Este seria um erro grave, do ponto de vista kuhniano. Um paradigma incorpora um arcabouço conceitual específico através do qual o mundo é visto e no qual ele é descrito, e um conjunto específico de técnicas experimentais e teóricas para fazer corresponder o paradigma à natureza. Mas não há motivo algum, a priori, para que se espere que um paradigma seja perfeito, ou mesmo o melhor disponível. Não existem procedimentos indutivos para se chegar a paradigmas perfeitamente adequados. Conseqüentemente, a ciência deve conter em seu interior um meio de romper de um paradigma para um paradigma melhor. Esta é a função das revoluções. Todos os paradigmas serão inadequados, em alguma medida, no que se refere à sua correspondência com a natureza. Quando esta falta de correspondência se torna séria, isto é, quando aparece crise, a medida revolucionária de substituir todo um paradigma por um outro torna-se essencial para o efetivo progresso da ciência.
O progresso através de revoluções é a alternativa de Kuhn para o progresso cumulativo característico dos relatos indutivistas da ciência. De acordo com este último ponto de vista, o conhecimento científico cresce continuamente à medida que observações mais numerosas e mais variadas são feitas, possibilitando a formação de novos conceitos, o refinamento de velhos conceitos e a descoberta de novas relações licitas entre eles. Do ponto de vista específico de Kuhn isto é um engano por ignorar o papel desempenhado pelos paradigmas na orientação da observação e da experiência. Exatamente porque os paradigmas possuem uma influência tão persuasiva sobre a ciência praticada no interior deles é que a substituição de uni por outro precisa ser revolucionária.
Vale a pena mencionar uma outra função servida pelo relato de Kuhn. Os paradigmas de Kuhn não são tão preciosos que possam ser substituídos por um conjunto explícito de regras, como foi mencionado acima. É bem possível que cientistas diferentes ou diferentes grupos de cientistas interpretem e apliquem o paradigma de uma maneira um tanto diferente. Face à mesma situação, nem todos os cientistas chegarão à mesma conclusão ou adotarão a mesma estratégia. Isto possui a vantagem de o número de estratégias tentadas ser multiplicado. Os ricos são distribuídos, assim, através da comunidade cientifica e aumentadas as chances de algum sucesso a longo prazo. “De que outra forma”, pergunta Kulin, “poderia o grupo como um todo distribuir as suas apostas?”
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Fonte:
Alan F. Chalmers: “O que é Ciência afinal?” Tradução: Raul Filker. Editora Brasiliense, 1993, 134-136.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida obra.
Última edição por Eduardo em Sáb Abr 09, 2011 7:30 pm, editado 1 vez(es)
Thomas Kuhn e o funcionamento comunitário da ciência
"Embora, o modelo mertoniano tenha prevalecido até a década de setenta como um dos principais modelos da sociologia da ciência, a partir do final da década de cinqüenta e início dos anos sessenta, outros pensadores contribuíram para desconstrução dos modelos lógicos da filosofia da ciência que predominavam até então. Autores como Thomas S. Kuhn, Paul Feyranbend, Ludwig Wittgenstein, dentre outros, começaram a explicitar e apresentar ferramentas conceituais que explicitavam aspectos não contemplados nos estudos epistemológicos da ciência. A função da história, a subjetividade do cientista, a linguagem e as transgressões metodológicas são alguns dos pontos investigados por esses pensadores que auxiliaram a crítica da ciência como algo “puro” que poderia ser analisada apenas por seus aspectos racionais. Algo que se tornou cada vez mais difícil à medida que a pesquisa histórica e sociológica se entrelaçava com temas supostamente lógicos da ciência. (Oliva, 1994) O clássico trabalho de 1962 de Thomas S. Kuhn, “A Estrutura das Revoluções Científicas” é uma síntese e, ao mesmo tempo, um marco nas discussões sobre a história e sociologia da ciência, que traz a tona o controle social da ciência.
Kuhn (1962/2006), ao buscar compreender os padrões de uma comunidade cientifica e como ocorrem as mudanças de perspectivas científicas, chamadas de revoluções científicas, apresenta uma interpretação que vai muito além da epistemologia positivista. Na verdade, sua obra caracteriza-se por não dar destaque especial à epistemologia, mas sim a questões de ordem subjetiva e formas de controle social estabelecidas pela comunidade científica que são determinantes para a maneira como o cientista direciona seus esforços para certos problemas científicos. Para isso, Kuhn recorre a diversas disciplinas: História, Sociologia, Psicologia, Filosofia da linguagem, dentre outras. É emblemática nesse sentido a afirmação de Kuhn (1962/2006), na introdução de seu livro, quando afirma que: “(...) muitas de minhas generalizações dizem respeito à sociologia ou à Psicologia Social dos cientistas”.( p.27). Oliva (1994) sobre esse ponto destaca que:
É ambicioso o projeto Kuhniano: ir da história da ciência para a epistemologia passando por generalizações sobre as condições psicossociais que tornam possível fazer ciência. Daí conferir destaque à seguinte questão: é a comunidade especial que congrega os cientistas, que dá unidade mínima às atividades de seus praticantes ou é a existência de um método, ainda que tacitamente compartilhado, que gera a identidade peculiar dessa comunidade? Seu modo de respondê-la corresponde à busca dos pontos de interação entre as razões epistêmicas tradicionais e os fatores psicossociais que se fazem presentes no processo de reprodução da racionalidade científica. (Oliva, 1994, p. 68-69).
Para Kuhn (1962/2006) a comunidade científica é caracterizada pela adoção de um paradigma – ou matriz disciplinar 2. Para o autor “(...) paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma.” (Kuhn, 1962/2006, p. 201).
Dessa forma, a comunidade científica é constituída por pessoas que aderem ao paradigma formando o que ele chama de “ciência normal”. Essa adoção, segundo Kuhn (1962/2006), é fruto da tradição de pesquisa na qual os estudantes se inserem e são “obrigados” a se preocupar com determinados problemas que a comunidade científica impõe.
(...) “ciência normal” significa a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas passadas. Essas realizações são reconhecidas durante algum tempo por alguma comunidade científica como proporcionando os fundamentos para sua prática posterior.(p.29)
A partir disso, a comunidade científica estabelece formas de socialização específicas. Hochman (1994), ao discutir esse ponto na obra de Kuhn, sugere que o estabelecimento de um paradigma pode ser observado, em particular, pelos meios de comunicação utilizados pela comunidade. O aparecimento de revistas especializadas, sociedades, encontros e congressos, currículos de cursos, manuais científicos e livros didáticos são alguns dos meios pelos quais é possível observar a aceitação e divulgação de um paradigma.
Assim, Kuhn (1962/2006) salienta a necessidade de voltar-se para uma análise da estrutura comunitária da ciência. “Como se escolhe uma comunidade científica? Qual o processo e quais etapas as etapas de socialização de um grupo? Quais os objetivos coletivos de um grupo; que desvios, individuais ou coletivos, ele tolera?” (Kuhn, 1962/2006). São perguntas que podem indicar a organização social da comunidade científica.
Isso leva Kuhn (1962/2006) a dar destaque ao papel desempenhado pela linguagem assumida por uma comunidade cientifica uma vez que a relação entre os pesquisadores de uma comunidade científica ocorre por meio de uma linguagem bastante particular e, que para compreendê-la, é preciso estar minimamente inserido naquele contexto. Então, para Kuhn (1962/2006), a criação, legitimação e reprodução de uma linguagem é fator essencial para formação de uma comunidade científica. As duas últimas frases do posfácio da “Estrutura das revoluções científicas” evidenciam a importância dada a esse aspecto que é posteriormente uma das bases das tentativas reformulação de sua teoria.
O conhecimento científico, como linguagem, é intrinsecamente a propriedade comum de um grupo ou então não é nada. Para entendê-lo, precisamos conhecer as características essenciais dos grupos que a criam e o utilizam. (Kuhn, 1962/2006).
Embora a noção de paradigma seja vista por diversos críticos de Kuhn como uma idéia estática da ciência, Kuhn (1962/2006) afirma que não é verdade que sua teoria não reserve espaço para problemas. Para ele, esses problemas são revelados por aquilo que ele chama de anomalias, sendo essas fundamentais para transformações na ciência. Em termos gerais, anomalias são problemas que surgem no interior de uma comunidade científica quando conceitos e/ou teoria não possibilitam ou são limitados para a resolução de problemas científicos. Anomalias são normais na ciência, mas essas passam a desempenhar papel importante na transformação da ciência quando levam grande parte da comunidade científica a procurar sua resolução e essa resolução torna-se visível e explicita um problema do paradigma ao lidar com determinados fenômenos. Isso acaba por resultar na consciência de uma crise do paradigma que supostamente conseguia ter respostas satisfatórias para um determinado fenômeno.
Nesses momentos de crise do paradigma, são bastante comuns explicações não tradicionais para resolução do problema, o que acarreta a instauração de instabilidade do modelo vigente, de modo que o cientista passa a não mais ter confiança total em seu modelo científico. Com a eclosão dessa crise, todos os esforços da comunidade científica voltam-se para resolução desse problema que é em geral resolvido através da formulação de um novo modelo científico - estrutura-se dessa forma uma revolução científica. A partir dessa revolução, a comunidade científica passa a operar de forma totalmente incompatível com o paradigma anterior – assim um paradigma torna-se incomensurável . Isso significa que:
Conseqüentemente, em períodos de revolução, quando a tradição científica normal muda, a percepção que o cientista tem de seu meio ambiente deve ser reeducada – deve aprender a ver uma nova forma (gestalt) em algumas situações com as quais já está familiarizado. Depois de fazê-lo, o mundo de suas pesquisas parecerá, aqui e ali, incomensurável com o que habitava anteriormente. Está é uma outra razão pelo qual escolas guiadas por paradigmas diferentes estão sempre em desacordos.(Kuhn, 1962/2006, p.148)
Para Kuhn (1962/2006), o resultado de uma revolução científica é que a comunidade passa a vigorar sobre uma nova visão de mundo. Embora, não seja nosso objetivo aprofundar nas complexas discussões críticas que o trabalho do referido autor suscita até hoje.
Destacam-se neste momento dois pontos importantes para o campo da presente investigação. O primeiro diz respeito a principal fonte de crítica ao trabalho de Kuhn – a noção de incomensurabilidade dos paradigmas. O que alguns autores (Oliva, 1994; Roque, 2002) sugestionam é que uma revolução científica não significa o rompimento total com um modelo anterior e muito menos que o cientista mude de forma irrevogável sua visão de mundo ao adotar um paradigma novo. O segundo aspecto diz respeito às várias discussões sobre a impossibilidade de utilização do modelo de Kuhn para interpretação das ciências humanas e sociais. Isso porque, para Kuhn, seria impossível falar de paradigma nessas ciências. Em sua perspectiva, elas estariam situadas em um período denominado de pré-paradigmático, logo estariam em constante crise pré-paradigmática. Contudo, ele não argumenta que isso signifique algo inferior às ciências naturais nem muito menos que vários de seus conceitos, e esclarecimentos acerca do funcionamento da comunidade científica não sejam úteis para uma interpretação das ciências humanas. Embora, seja quase impossível uma interpretação negativa derivada dessa concepção. Desse modo, o próprio Kuhn (1962/2006) realiza em sua obra análises de alguns aspectos do funcionamento das ciências sociais e outras áreas do conhecimento a partir de muitos de seus conceitos.
O que é necessário destacar neste momento é que a apresentação de algumas noções gerais das formulações de Kuhn não tiveram como função recorrer aos seus argumentos como base para discutir ou afirma a idéia de paradigma no contexto da Psicologia Social. O que buscamos foi destacar que Kuhn (1962/2006) explicita importantes aspectos que envolvem o controle social da ciência que parecem independer de qual modelo científico está se tratando, principalmente, aqueles envolvidos na definição de ciência normal.
Nessa perspectiva, Masterman (1970/1979) afirma que, dentre os diversos significados dados à expressão paradigma por Kuhn, encontra-se aquele que aproxima sua análise de questões sociológicas da ciência as quais envolvem o funcionamento da comunidade científica. Assis (1993) sugere que, nessa definição de paradigma, Kuhn estaria mais preocupado com questões que: “Dizem respeito mais à natureza da aceitação que às características estruturais de um corpo de doutrina.”(p.140).
A definição, por exemplo, dos problemas que serão investigados por uma comunidade científica estão largamente relacionados ao paradigma ou matriz disciplinar adotada até aquele momento. “Numa larga medida, esses são os únicos problemas que a comunidade admitirá como científicos ou encorajará seus membros a resolver.” (Kuhn 1962/2006, p.60). Nesse sentido, Kuhn (1962/2006) destaca o controle exercido pela comunidade científica sobre seus integrantes. Esse controle, com certeza, é mais explícito nas ciências naturais na qual os programas de pesquisa são bastante específicos e supostamente mais rígidos do que nas ciências humanas. O que não significa que esse tipo de controle não ocorra em tais ciências. O que parece acontecer, nesse caso, é um controle menos explícito o que dificulta observar as formas de controle social vigentes nessas áreas.
Ainda sobre o controle social da ciência Kuhn (1962/2006) chama atenção de aspectos até então poucos destacados, como, por exemplo, o pressuposto de que a comunidade científica é coercitiva e dogmática, em especial, com aqueles que buscam demonstrar que o modelo em vigor de uma ciência apresenta problemas, e outro pressuposto polêmico seria o de que a ciência, em alguma medida, é um empreendimento bem sucedido porque grande parte dos cientistas aceitam os pressupostos daquele modelo em vigor sem questionamento. Por isso, Kuhn (1962/2006) destaca que, para compreender como um pesquisador escolhe uma comunidade científica e como ele torna-se membro dessa sociedade, é preciso saber quais as etapas da socialização de uma comunidade científica e como são definidos os objetivos de um grupo e, ainda, como a comunidade lida com os desvios individuais e coletivos. O evidencia que tal enfoque salienta a importância de se voltar para o funcionamento comunitário da ciência.”
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É isso!
Fonte:
Robson Nascimento da Cruz: “A produção social do conhecimento na Psicologia Social brasileira: um estudo descritivo/exploratório a partir da revista Psicologia & Sociedade”. (Dissertação de mestrado apresentada ao Curso de pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre). Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2008.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
"Embora, o modelo mertoniano tenha prevalecido até a década de setenta como um dos principais modelos da sociologia da ciência, a partir do final da década de cinqüenta e início dos anos sessenta, outros pensadores contribuíram para desconstrução dos modelos lógicos da filosofia da ciência que predominavam até então. Autores como Thomas S. Kuhn, Paul Feyranbend, Ludwig Wittgenstein, dentre outros, começaram a explicitar e apresentar ferramentas conceituais que explicitavam aspectos não contemplados nos estudos epistemológicos da ciência. A função da história, a subjetividade do cientista, a linguagem e as transgressões metodológicas são alguns dos pontos investigados por esses pensadores que auxiliaram a crítica da ciência como algo “puro” que poderia ser analisada apenas por seus aspectos racionais. Algo que se tornou cada vez mais difícil à medida que a pesquisa histórica e sociológica se entrelaçava com temas supostamente lógicos da ciência. (Oliva, 1994) O clássico trabalho de 1962 de Thomas S. Kuhn, “A Estrutura das Revoluções Científicas” é uma síntese e, ao mesmo tempo, um marco nas discussões sobre a história e sociologia da ciência, que traz a tona o controle social da ciência.
Kuhn (1962/2006), ao buscar compreender os padrões de uma comunidade cientifica e como ocorrem as mudanças de perspectivas científicas, chamadas de revoluções científicas, apresenta uma interpretação que vai muito além da epistemologia positivista. Na verdade, sua obra caracteriza-se por não dar destaque especial à epistemologia, mas sim a questões de ordem subjetiva e formas de controle social estabelecidas pela comunidade científica que são determinantes para a maneira como o cientista direciona seus esforços para certos problemas científicos. Para isso, Kuhn recorre a diversas disciplinas: História, Sociologia, Psicologia, Filosofia da linguagem, dentre outras. É emblemática nesse sentido a afirmação de Kuhn (1962/2006), na introdução de seu livro, quando afirma que: “(...) muitas de minhas generalizações dizem respeito à sociologia ou à Psicologia Social dos cientistas”.( p.27). Oliva (1994) sobre esse ponto destaca que:
É ambicioso o projeto Kuhniano: ir da história da ciência para a epistemologia passando por generalizações sobre as condições psicossociais que tornam possível fazer ciência. Daí conferir destaque à seguinte questão: é a comunidade especial que congrega os cientistas, que dá unidade mínima às atividades de seus praticantes ou é a existência de um método, ainda que tacitamente compartilhado, que gera a identidade peculiar dessa comunidade? Seu modo de respondê-la corresponde à busca dos pontos de interação entre as razões epistêmicas tradicionais e os fatores psicossociais que se fazem presentes no processo de reprodução da racionalidade científica. (Oliva, 1994, p. 68-69).
Para Kuhn (1962/2006) a comunidade científica é caracterizada pela adoção de um paradigma – ou matriz disciplinar 2. Para o autor “(...) paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham um paradigma.” (Kuhn, 1962/2006, p. 201).
Dessa forma, a comunidade científica é constituída por pessoas que aderem ao paradigma formando o que ele chama de “ciência normal”. Essa adoção, segundo Kuhn (1962/2006), é fruto da tradição de pesquisa na qual os estudantes se inserem e são “obrigados” a se preocupar com determinados problemas que a comunidade científica impõe.
(...) “ciência normal” significa a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações científicas passadas. Essas realizações são reconhecidas durante algum tempo por alguma comunidade científica como proporcionando os fundamentos para sua prática posterior.(p.29)
A partir disso, a comunidade científica estabelece formas de socialização específicas. Hochman (1994), ao discutir esse ponto na obra de Kuhn, sugere que o estabelecimento de um paradigma pode ser observado, em particular, pelos meios de comunicação utilizados pela comunidade. O aparecimento de revistas especializadas, sociedades, encontros e congressos, currículos de cursos, manuais científicos e livros didáticos são alguns dos meios pelos quais é possível observar a aceitação e divulgação de um paradigma.
Assim, Kuhn (1962/2006) salienta a necessidade de voltar-se para uma análise da estrutura comunitária da ciência. “Como se escolhe uma comunidade científica? Qual o processo e quais etapas as etapas de socialização de um grupo? Quais os objetivos coletivos de um grupo; que desvios, individuais ou coletivos, ele tolera?” (Kuhn, 1962/2006). São perguntas que podem indicar a organização social da comunidade científica.
Isso leva Kuhn (1962/2006) a dar destaque ao papel desempenhado pela linguagem assumida por uma comunidade cientifica uma vez que a relação entre os pesquisadores de uma comunidade científica ocorre por meio de uma linguagem bastante particular e, que para compreendê-la, é preciso estar minimamente inserido naquele contexto. Então, para Kuhn (1962/2006), a criação, legitimação e reprodução de uma linguagem é fator essencial para formação de uma comunidade científica. As duas últimas frases do posfácio da “Estrutura das revoluções científicas” evidenciam a importância dada a esse aspecto que é posteriormente uma das bases das tentativas reformulação de sua teoria.
O conhecimento científico, como linguagem, é intrinsecamente a propriedade comum de um grupo ou então não é nada. Para entendê-lo, precisamos conhecer as características essenciais dos grupos que a criam e o utilizam. (Kuhn, 1962/2006).
Embora a noção de paradigma seja vista por diversos críticos de Kuhn como uma idéia estática da ciência, Kuhn (1962/2006) afirma que não é verdade que sua teoria não reserve espaço para problemas. Para ele, esses problemas são revelados por aquilo que ele chama de anomalias, sendo essas fundamentais para transformações na ciência. Em termos gerais, anomalias são problemas que surgem no interior de uma comunidade científica quando conceitos e/ou teoria não possibilitam ou são limitados para a resolução de problemas científicos. Anomalias são normais na ciência, mas essas passam a desempenhar papel importante na transformação da ciência quando levam grande parte da comunidade científica a procurar sua resolução e essa resolução torna-se visível e explicita um problema do paradigma ao lidar com determinados fenômenos. Isso acaba por resultar na consciência de uma crise do paradigma que supostamente conseguia ter respostas satisfatórias para um determinado fenômeno.
Nesses momentos de crise do paradigma, são bastante comuns explicações não tradicionais para resolução do problema, o que acarreta a instauração de instabilidade do modelo vigente, de modo que o cientista passa a não mais ter confiança total em seu modelo científico. Com a eclosão dessa crise, todos os esforços da comunidade científica voltam-se para resolução desse problema que é em geral resolvido através da formulação de um novo modelo científico - estrutura-se dessa forma uma revolução científica. A partir dessa revolução, a comunidade científica passa a operar de forma totalmente incompatível com o paradigma anterior – assim um paradigma torna-se incomensurável . Isso significa que:
Conseqüentemente, em períodos de revolução, quando a tradição científica normal muda, a percepção que o cientista tem de seu meio ambiente deve ser reeducada – deve aprender a ver uma nova forma (gestalt) em algumas situações com as quais já está familiarizado. Depois de fazê-lo, o mundo de suas pesquisas parecerá, aqui e ali, incomensurável com o que habitava anteriormente. Está é uma outra razão pelo qual escolas guiadas por paradigmas diferentes estão sempre em desacordos.(Kuhn, 1962/2006, p.148)
Para Kuhn (1962/2006), o resultado de uma revolução científica é que a comunidade passa a vigorar sobre uma nova visão de mundo. Embora, não seja nosso objetivo aprofundar nas complexas discussões críticas que o trabalho do referido autor suscita até hoje.
Destacam-se neste momento dois pontos importantes para o campo da presente investigação. O primeiro diz respeito a principal fonte de crítica ao trabalho de Kuhn – a noção de incomensurabilidade dos paradigmas. O que alguns autores (Oliva, 1994; Roque, 2002) sugestionam é que uma revolução científica não significa o rompimento total com um modelo anterior e muito menos que o cientista mude de forma irrevogável sua visão de mundo ao adotar um paradigma novo. O segundo aspecto diz respeito às várias discussões sobre a impossibilidade de utilização do modelo de Kuhn para interpretação das ciências humanas e sociais. Isso porque, para Kuhn, seria impossível falar de paradigma nessas ciências. Em sua perspectiva, elas estariam situadas em um período denominado de pré-paradigmático, logo estariam em constante crise pré-paradigmática. Contudo, ele não argumenta que isso signifique algo inferior às ciências naturais nem muito menos que vários de seus conceitos, e esclarecimentos acerca do funcionamento da comunidade científica não sejam úteis para uma interpretação das ciências humanas. Embora, seja quase impossível uma interpretação negativa derivada dessa concepção. Desse modo, o próprio Kuhn (1962/2006) realiza em sua obra análises de alguns aspectos do funcionamento das ciências sociais e outras áreas do conhecimento a partir de muitos de seus conceitos.
O que é necessário destacar neste momento é que a apresentação de algumas noções gerais das formulações de Kuhn não tiveram como função recorrer aos seus argumentos como base para discutir ou afirma a idéia de paradigma no contexto da Psicologia Social. O que buscamos foi destacar que Kuhn (1962/2006) explicita importantes aspectos que envolvem o controle social da ciência que parecem independer de qual modelo científico está se tratando, principalmente, aqueles envolvidos na definição de ciência normal.
Nessa perspectiva, Masterman (1970/1979) afirma que, dentre os diversos significados dados à expressão paradigma por Kuhn, encontra-se aquele que aproxima sua análise de questões sociológicas da ciência as quais envolvem o funcionamento da comunidade científica. Assis (1993) sugere que, nessa definição de paradigma, Kuhn estaria mais preocupado com questões que: “Dizem respeito mais à natureza da aceitação que às características estruturais de um corpo de doutrina.”(p.140).
A definição, por exemplo, dos problemas que serão investigados por uma comunidade científica estão largamente relacionados ao paradigma ou matriz disciplinar adotada até aquele momento. “Numa larga medida, esses são os únicos problemas que a comunidade admitirá como científicos ou encorajará seus membros a resolver.” (Kuhn 1962/2006, p.60). Nesse sentido, Kuhn (1962/2006) destaca o controle exercido pela comunidade científica sobre seus integrantes. Esse controle, com certeza, é mais explícito nas ciências naturais na qual os programas de pesquisa são bastante específicos e supostamente mais rígidos do que nas ciências humanas. O que não significa que esse tipo de controle não ocorra em tais ciências. O que parece acontecer, nesse caso, é um controle menos explícito o que dificulta observar as formas de controle social vigentes nessas áreas.
Ainda sobre o controle social da ciência Kuhn (1962/2006) chama atenção de aspectos até então poucos destacados, como, por exemplo, o pressuposto de que a comunidade científica é coercitiva e dogmática, em especial, com aqueles que buscam demonstrar que o modelo em vigor de uma ciência apresenta problemas, e outro pressuposto polêmico seria o de que a ciência, em alguma medida, é um empreendimento bem sucedido porque grande parte dos cientistas aceitam os pressupostos daquele modelo em vigor sem questionamento. Por isso, Kuhn (1962/2006) destaca que, para compreender como um pesquisador escolhe uma comunidade científica e como ele torna-se membro dessa sociedade, é preciso saber quais as etapas da socialização de uma comunidade científica e como são definidos os objetivos de um grupo e, ainda, como a comunidade lida com os desvios individuais e coletivos. O evidencia que tal enfoque salienta a importância de se voltar para o funcionamento comunitário da ciência.”
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É isso!
Fonte:
Robson Nascimento da Cruz: “A produção social do conhecimento na Psicologia Social brasileira: um estudo descritivo/exploratório a partir da revista Psicologia & Sociedade”. (Dissertação de mestrado apresentada ao Curso de pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre). Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2008.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
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